Jacarandás

Eram jacarandás, aquelas árvores. Ontem te enviei fotos da Avenida de Mayo toda florida, só não sabia o que eram. Arrisquei que fossem ipês, mas o correto é que são jacarandás. Não foi conversando com alguém aqui descobri, pelo menos não exatamente. Estava folheando uma das cartas de Sábato no café dentro do Ateneu e li quando ele diz que a velocidade da vida estava impedindo os argentinos de perceberem como florescem os jacarandás. Por eliminação e por estar na primavera deduzo que sejam as mesmas plantas – além disso, o Google confirmou. Faz muito barulho aqui dentro, tenho a impressão de que estou em um shopping onde turistas compram coisas muito parecidas com o que se vende em Saraivas e Leituras Brasil afora, só que nenhuma loja das duas redes fica num antigo teatro reformado e adaptado para ser o paraíso dos livros. O charme é o espaço.

Um grupo de coreanos ou de chineses chegou incomodando a escrita que comecei no café e por isso tive que sair. Quase tudo é motivo para tirarem fotografias e isso me irrita. Estava sentado numa mesa que fica em frente à parede onde colocaram várias chaves de luz como decoração, ao fundo e à esquerda. De dois em dois minutos uma mulher ou um senhor com chapéu de pescador se aproximavam sorrindo e abaixando a cabeça, para logo depois fotografar com flash alto. Um deles fez três fotos da mesma parede. Paguei e saí. É muito bom andar pelas ruas de Buenos Aires no final de outubro, ainda é fresco, e a cidade inteirinha fica lilás.

Encontrei outro café, menos badalado, em que pude novamente tirar meu caderno e voltar a escrever. Preferi a mesa na calçada porque ali eu conseguiria acender um cigarro ou outro. Comer aqui é barato e o atendimento quase sempre é bom. A língua diferente expõe uma barreira que faz com que a atenção esteja mais no diálogo do que noutras coisas e assim flui agradavelmente a comunicação, quanto mais porque me decidi a não ficar arrastando um portunhol caricato, falo em português e sustento a bela indiferença da língua estrangeira, mas que é prima do espanhol. O peso argentino é desvalorizado em relação ao real, o que me faz poder comer e beber bastante gastando o equivalente a doze ou dezoito reais. Tenho a impressão de que você adoraria conhecer um desses cafés.

Foi ruim o modo como fomos dormir depois de conversar ontem – ou deitar, pelo menos: eu não preguei os olhos. Ainda estou exausto de todas as mudanças que têm acontecido nos últimos meses e, com a clarividência de algum profeta que é chamado pelo seu deus para anunciar a peste à cidade em que cresceu, tenho a certeza transparente de que você faz parte disso. É injusto ter de escolher entre continuar o trabalho e me mudar do Brasil ou investir na possibilidade de algum nós. Como agora estou sentado em frente ao café Tortoni, isso é suficiente para me sentir culpado pelo resto.

Fiz o que me sugeriu e saí bem cedo para caminhar e fotografar mais a cidade. Ouvir a sua voz ontem me fez repensar se talvez eu não tenha escolhido mal. Sinceramente, vender equipamentos para sistemas de alarme e monitoramento doméstico em outro país não é exatamente o que me anima. Tudo bem que são onze anos de trabalho no mesmo lugar, além do que me tornei amigo do Rafael, mas, mesmo assim… Num dia eu comecei e no outro já tinha passado uma década e eu ainda estava lá.

O tempo deveria diminuir a confusão aqui dentro. São cinco meses que estou longe, numa casa estranha, praticamente sozinho. Saí poucas vezes a noite porque não me acostumei aos pubs daqui, são escuros demais e abafados; além disso, achei a cerveja quente. O que faço é andar pelas ruas, conhecer livrarias e visitar o Martí, que mora com a mãe, D. Consuelo, uma argentina gorda de gênio forte. Sempre que vou, ela me conta que fez uma excursão para o Rio de Janeiro em 1994. A história é a mesma. Não muda, não tem contradições; nem mesmo quando ela imita o que chama de sotaque brasileiro me explicando como pedia informações em Ipanema.

Também encontrei um cantinho meu dentro da catedral de Buenos Aires. O prédio em si é diferente das nossas catedrais, parece uma construção grega ou coisa assim. Você vai debochar quando ler, mas me lembra uma das doze casas dos Cavaleiros do Zodíaco. Assim, meio fora do normal, e talvez por isso, é ela junto com a arquitetura do início do século que fazem valer ter alugado o quarto na Avenida de Mayo. Me sentei atrás de um rapaz que orava de joelhos hoje cedo. Ele estava apoiado no genuflexório com a cabeça enterrada nas mãos, imóvel. A claraboia da cúpula deixava entrar luz, e tive a impressão de que era como se em outra dimensão ouvissem a prece que fazia. Ficou assim por tanto tempo que me seduziu, pelo modo como parecia absorto em uma conexão espiritual com o lugar, e isso a ponto de também eu começar a orar, do meu jeito, conversando com aquele deus silencioso. Não me ajoelhei porque senti vergonha, mas baixei a cabeça e fechei os olhos. Segurei na mão direita o patuá que você me deu quando te contei que me mudaria, sempre levo comigo na mochila para caso surja uma situação em que fazer qualquer evocação seja determinante. Me senti leve. Acredita que quando abri os olhos o jovem tinha sumido? Corei porque uma senhora estava apontando para mim e conversando com outra do meu lado no banco com orgulho, como se eu fosse uma espécie de animal estranho na fauna dos homens de quase quarenta anos, que cortava o cabelo e ia à igreja numa quinta-feira pela manhã.

Só um minuto, vou trocar de lugar com algumas pessoas que chegaram. Estou em uma mesa de quatro lugares, mas como estou sozinho é melhor que eu mude para outra e deixe que eles se juntem.

Pronto. Me perdi um pouco sobre onde estava e não vou reler o que já escrevi até aqui, detesto reler o que escrevo. Em síntese: sou péssimo com as fotografias, Martí me acompanha às vezes e tenho dormido mal. Mas não é importante nada disso, o tempo não sabe andar para trás, você me disse uma vez, marmota. Se estivesse aqui me veria sorrindo agora enquanto me lembro daquele dia em que me ofereceu carona para o aeroporto e chamou um Uber porque tinha medo de ficar agarrada no trânsito. Mesmo eu te dizendo que tínhamos tempo você me respondeu do alto do seu um metro e sessenta, com vinco e brabeza no rosto que não estava pedindo minha opinião, afinal, o tempo não andava para trás. Isso pode ser caracterizado como um presságio? Você leu em algum lugar ou inventou?

São quase sete horas da noite e ainda está claro; o sol agora começa a ficar preguiçoso e baixar. Muitas pessoas pelas ruas, voltando para casa ou comprando porcarias nos kioskos. A avenida inteira está lilás e com a claridade indireta do final do dia é como se eu estivesse dentro de um livro. Tenho a impressão de que, mesmo quando eu volte ao Brasil, não vou me esquecer dos jacarandás de Buenos Aires e das pessoas que caminham com os olhos apontados para as calçadas, sem se darem conta de que as árvores fazem uma bruma mística logo acima do chão, pouco mais de dois ou três metros acima. De verdade, eu não julgo essas pessoas, porque existe uma inércia no que é bom que faz com que imaginemos que o bom não passará para nós, ou que estará ali quando num feriado, nas férias, na folga, enfim, quando a gente, sem ser a gente do dia a dia, olhe para o alto. Mas os jacarandás não estão floridos o ano todo. As coisas boas também não duram a vida toda, só na memória e nas cartas isso acontece. Acho que é por isso que escrevo.

Não vou pedir que me espere, e também não vou te garantir que por aqui não farei novas amizades, algumas até com potencial de me fazer querer esquecer o que aconteceu – como se fosse possível apagar uma tatuagem. Não, mas te garanto que um dia eu vou voltar ou você irá fugir daí. Quando acontecer, colocamos de fiel do mundo o peito e as pupilas. Dilatem-se as últimas e demonstre o menor sinal taquicárdico o primeiro, e nos reconheceremos pelo cheiro. Nunca encontrei outra mulher que notasse que meu cheiro mudava antes do amor. Entre os beijos que trocamos na cabine apertada do seu carro, eu me espantava toda vez que segurava meu rosto distante só dois ou três dedos do seu e me dizia sussurrando “seu cheiro mudou”. Esse foi um código nosso, sofisticado demais para ser repetido, pelo menos por mim. Na realidade, eu até tremo de pensar que você fale isso para todos os outros – o que, convenhamos, te colocaria numa posição olfativa invejável, porém diminuiria consideravelmente o meu glamour.

São dez e vinte, e agora é que volto pra casa. Martí me ligou e fomos beber. Peguei uma flor do jacarandá e guardei dentro do caderno para tentar fazer como já vi no livro de outras pessoas. Caso ela fique seca e bonita vou enviar junto com a carta, que não tenho a menor ideia de como, e se, vai chegar ao Brasil, nunca parei para imaginar os mecanismos do correio internacional, mas me recuso a te mandar só um e-mail, eles são frios. Não têm caligrafia.

Talvez, quando eu transcrever daqui para o A4, tire algumas coisas melosas demais para um casal que mora a dois mil quilômetros de uma distância sem esperança. Um dia largo o emprego e apareço na sua porta, aí quero ver. Mentira. Droga. Fim de noite, vinho, saudade e esses jacarandás. Sabe, se eu tivesse poder agora, só desejaria que estivesse aqui, e fumasse um cigarro comigo, enquanto olhamos essa Avenida.


Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


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