Retalhos do passado

histórias “desencobertas” pelo restauro de um “Castelinho” oitocentista.

Em 1861, Juiz de Fora recebia o imperador D. Pedro II e sua comitiva na solene inauguração da Estrada União e Indústria. Mariano Procópio Ferreira Lage, o idealizador do empreendimento, construiu no pico de uma colina, situada em sua Chácara, um castelo onde seriam acolhidos os imperiais. O local, conhecido como “Castelinho” ou “Villa”, tornou-se a casa de veraneio da Família Ferreira Lage. Décadas depois, Alfredo Ferreira Lage, filho de Mariano, transformou o espaço em museu, um projeto dedicado à consagração da memória paterna. Em 1921, ano do centenário de nascimento do patriarca, ocorria a inauguração oficial do Museu Mariano Procópio.

Ao longo desses 158 anos de história, a Villa não apenas atravessou trajetórias de diversas gerações, como também recebeu as marcas e os vestígios daqueles que por ela passaram. Afinal, os espaços e os objetos não apenas acompanham o envelhecimento dos sujeitos históricos, como também recebem suas marcas e envelhecem junto com eles. Desde a origem dessa edificação, diversos vestígios humanos foram sendo deixados em suas paredes, chão, teto, portas, janelas e frestas. Diversas camadas do tempo foram se acumulando e se sobrepondo umas às outras. A cada esforço de manter o monumento vivo, alguns detalhes foram lembrados e enaltecidos, enquanto outros foram ressignificados, esquecidos ou simplesmente submersos nas camadas do tempo.

Cada intervenção do restaurador, além de agir sobre o bem material, respeitando a sua historicidade, faz “brotar” na superfície do presente vestígios de tempos passados. “Passados” muitas vezes esquecidos, porém, latentes, que se descortinam diante de olhos atentos e interessados em entender os processos históricos. “Passados” que emergem sob a forma de “retalhos” que se complementam e se encaixam como as peças de um complexo quebra-cabeça nem sempre passível de ser completado.

A remoção de alguns papéis de parede da Villa, que se encontravam deteriorados pelo tempo, colocou à mostra diversos detalhes escondidos atrás das estampas que ornamentam alguns ambientes. Destacamos aqui, por exemplo, os desenhos feitos a mão e a colagem de jornais nas paredes. Os desenhos provavelmente serviam como estudo ou esboço de ornamentos a serem aplicados no teto. Alguns deles foram executados, ao passo que outros não o foram, deixando entrever alternativas e escolhas nesse processo de construção do decorativismo interno.

Os jornais colados, por sua vez, serviam para auxiliar na fixação dos papéis de parede. Originalmente efêmeros e pouco resistentes a uma história de longa duração, os periódicos ficaram ali parcialmente preservados, ainda que não intencionalmente. As notícias neles veiculadas fornecem importantes informações históricas sobre o contexto em que o prédio foi construído. Eles informam sobre hábitos, costumes e acontecimentos que transpassam as paredes daquele ambiente doméstico, conectando-o à sociedade, cultura, economia e política do Brasil e do mundo oitocentista. Curiosamente, um dos exemplares traz registrado a caneta o nome do “Illmo. Snr. M. P. Ferreira Lage”, o proprietário da residência.

Os jornais também trazem outra informação importante: alguns deles, sendo datados de 1862, confirmam a hipótese há muito tempo difundida pela tradição oral de antigos funcionários do Museu, de que o interior da Villa não estaria pronto na ocasião da inauguração da Estrada União e Indústria e da visita dos imperiais. Tal informação, “desencoberta” pelo processo de restauro, pode ser igualmente confirmada no texto que Ignacio de Vilhena Barbosa, historiador e arqueólogo português da Academia Real das Ciências de Lisboa, publicou no Arquivo Pitoresco, em 1865. Esse periódico integra o acervo da Biblioteca do Museu Mariano Procópio.

Se as paredes da Villa têm ouvido, não se sabe. Porém, é certo que precisamos ter olhos atentos ao que elas têm a nos dizer em frente e verso. A partir de novas perguntas, “velhos retalhos” ocultos pelas camadas do tempo podem contribuir para o avanço do conhecimento histórico relativo a esse importante monumento arquitetônico.


Sérgio Augusto Vicente: sou professor de História e historiador, com bacharelado, licenciatura e mestrado em História pela UFJF. Atualmente, curso doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História, vinculado a mesma universidade. Dedico-me a estudar a história social da cultura no Brasil, trajetórias individuais e de grupos, história intelectual, patrimônio cultural, memória e educação.

Moro em Juiz de Fora (MG), onde trabalho no Museu Mariano Procópio. Contudo, mantenho-me umbilicalmente ligado às origens rurais de minha família, num sítio em Simão Pereira (MG), uma espécie de refúgio localizado à margem de uma estrada de terra que liga ao município vizinho de Belmiro Braga (MG). Sítio que se tornou memória afetiva de várias gerações de minha família, desde que meus tataravós portugueses o compraram em 1910. Sempre que posso, escrevo crônicas e poesias, abrangendo temáticas diversas, como memórias, cotidiano, política, etc. 

No ciclismo amador, conecto a necessidade de cuidar da saúde física/mental com todas as áreas de minha vida, a que me dedico com amor e carinho.  Entre um passeio ciclístico e outro, inspiro-me em histórias e memórias do cotidiano e paisagens de Juiz de Fora e região. Na página “Diários de bicicleta”, no Facebook, é possível ter acesso a esses registros


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