27. Salmo 23:1-6

*Gatilho: Esse texto possui conteúdo sensível para pessoas que sofrem de transtornos de ansiedade e depressão.


“O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará.” O pastor tava recitando o salmo; não me vinha mais nada na cabeça. Tomei uma decisão muito difícil de minha vida. Mas não posso me arrepender agora. Não posso. Não dava mais pra continuar assim, não dava. Sou preto, meus filho são preto, minha esposa é preta de cabelo pixaim, empregada doméstica em casa de grã-fino, sempre passando por vergonha atrás de vergonha por mixaria. Eu sou servente de pedreiro. Com essa pandemia ficamo sem eira nem beira, catando migalha de quem pudesse ajudar. O tal do auxílio emergencial do governo não vinha, sempre esbarrava em alguma falta de documento, algum problema de banco. Nós tamo passando fome. Vim na igreja pra ver se alimento a alma, mas foi aqui que tudo clareou. Assim que pisei no assoalho que ajudei a construir com essas minhas mão calejada, tive uma ideia. Eu sei. É muito difícil fazer isso. “Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas.” Já não há mais tranquilidade neste país de merda. Não há. Pobre e preto aqui não tem vez. Eu sou vizinho daquele garoto, o que foi morto por policiais, o menino João Pedro, levou tiro nas costa. Eu vi aquele menino crescer, eu peguei ele no colo, meu Deus! Como pode? E ainda por cima temo esse vírus do mal que tá matando um monte de gente. E o presidente nem aí, fazendo pouco caso! Como pode? O dono do barraco vai pô nós pra fora. Tem dois mês que não pago o aluguel. Minha mulher está tão nervosa com os dois menino em casa. Eles não estuda, não podem estudá, porque nós não temo internet. Júlia, 10 ano, e João, 8, umas gracinha. Minhas vida. Meu tudo! Não posso deixar eles assim vivendo assim essa vida de merda. Pra quê? Pra sofrê? “Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do Seu nome.” Que justiça nós podemo tê? Me fala? A justiça dos homê são matar e morrer. É a ganância, o poder, a guerra, a luta. Essa sim é a justiça deles. Você prega o bem, você devota ao próximo, sela a paz interior, e o que recebe? Um tiro nas costa do governo, a sua carta de alforria. É isso que você recebe. “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque Tu estás comigo; a Tua vara e o Teu cajado me consolam.” Só o Altíssimo pode tudo, e ele me perdoará, ele me entenderá. Estou fazendo isso por amor, o amor me move e me ilumina. Está tudo planejado, a minha cabeça está decidida, vou voltar pra casa, preparar um suco bem forte de limão com abacaxi que vou pendurar na conta do mercado do seu Alcides e encher o jarro de uma dose boa de estricnina; foi bom ter guardado aquilo naquela infestação danada que teve ano passado de ratos. “Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda.” E todos vão beber, eu serei o último pra ter certeza do ato, pra nos livrar desse fardo que é nossa vida. Espero que Deus me perdoe. Eu sei que Ele não quis essa maldade toda no mundo, é o tal do livre arbítrio. Mas que dói, dói. De noite será a redenção. Por mim, por eles, ao Senhor. “Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias.”


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br


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