Cachoeira

— Petra, entra aqui, a água tá ótima! — Foram as palavras que me tiraram do meu
transe. Era a primeira vez que eu visitava uma cachoeira, e estava verdadeiramente atônita com tudo ao meu redor. As cores, sons, cheiros, era como um novo universo que ninguém nunca tinha me pedido para participar, até agora.

Apesar disso tudo, lá estava eu sentada em uma pedra, na sombra de algumas árvores, sem uma gota de água em cima de mim. Eu observava Beta e Otávio brincando na água como duas crianças e sentia uma crescente frustração. Eles eram um casal lindo. Isso era parte do problema. Tinha medo de me aproximar, ambos eram tentadores demais.

Otávio é meu melhor amigo desde sempre. Estudamos os dois em uma escola
católica que não tinha nada a ver com a gente, um ou dois padres em cada corredor, uma
capela dourada perto do pátio principal. Já nos beijamos algumas vezes, mas sempre em
um clima descontraído, melhores amigos que bebem demais vez ou outra, mas para o meu desencanto nunca passamos disso. Beta é claramente a alma gêmea de Otávio. Uma mulher de um metro e cinquenta e nove de altura que preenche qualquer ambiente com sua voz energética e sorriso hipnotizante. Nos conhecemos na festa de aniversário do meu sobrinho Miguel, afilhado de Otávio. Beta é tia de um amigo da escola de Miguel, e não hesitou em se apresentar quando nos viu.

— Vocês formam um lindo casal — ela disse, e foi prontamente desmentida por
Otávio, que riu e me apresentou devidamente como melhor amiga de infância.

Quando olhei para os olhos de Beta pela primeira vez, pensei que eram do castanho
mais lindo que já havia visto. Eram como duas avelãs brilhando bem na minha frente.
Naquele exato momento, eu sabia que precisava conquistar aquela mulher. Infelizmente, eu e Otávio somos muito conectados, e ele teve o exato mesmo pensamento, mas mais agilidade do que eu, para o primeiro passo.

O meu objetivo aqui não é narrar a história dos dois, por mais linda e hollywoodiana que seja, mas sim aquele dia da cachoeira e seus desdobramentos. Afinal, mesmo que cada casal construa sua própria trajetória, as narrativas muitas vezes se cruzam. Se não fosse assim, ninguém se emocionaria escutando Anavitória ou lendo um romance adolescente do John Green.

— Petra, oi? Entra na água agora, senão eu vou aí te buscar!

— Tá bem, tô indo, calma.

Assim, fui. Entrei na água mais gelada que já havia mergulhado. Por um instante, eu
poderia jurar que senti todos os meus ossos dentro de mim, minha pele se arrepiando, meu coração errando uma batida. Quando emergi, os dois riam de mim – que com certeza já estava com os lábios azuis, apesar do sol.

— Vai passar, é só não ficar muito parada — Disse Otávio, ainda achando graça da
minha evidente falta de preparo. Não faz mal, ele estava certo.

Cinco minutos depois, estávamos os três em sintonia, como se nossos corpos tivessem nascido para aquele ambiente – e não para os cubículos que morávamos na cidade. Cada movimento de Beta me deixava mais apaixonada, e cada olhar de Otávio também. Sentia que estava indo bem com meu autocontrole até a entrada de uma variável que eu não tinha considerado: Quando voltamos para o chalé que alugamos para o fim de semana, lá estavam quatro engradados de cerveja que Beta havia comprado de surpresa enquanto eu e Otávio dormíamos.

Nesse momento, convido Otávio para assumir a escrita desta narrativa, pois tenho medo de como minha memória editou nossos momentos daquela noite.

Petra estava nitidamente nervosa durante toda aquela viagem. Na verdade, eu e
Beta percebemos que ela hesitou já no convite, antes mesmo de pegarmos a estrada.

Preciso confessar, sou apaixonado por Petra desde a quarta série, quando ela dividiu seu pacote de biscoito passatempo comigo no dia que esqueci meu lanche em casa. Ao longo dos anos, ambos tivemos alguns relacionamentos mal resolvidos. Uma vez, namorei escondido por três meses o ex namorado dela, e com certeza não foi o melhor momento da nossa relação. Passados os mal entendidos, decidi que seria melhor ignorar os pensamentos platônicos sobre seu corpo toda vez que estávamos juntos. A realidade é que nunca tive muito sucesso com isso.

Naquela noite, eu sabia que Beta estava interessada em Petra. Atração nunca foi
um problema no nosso relacionamento, mas Petra era um ponto frágil pra mim. Não por ciúmes, mas talvez por medo de ser deixado de fora. Sentamos no tapete da sala com uma lata de cerveja cada, as outras no congelador. A cada latinha, tirávamos os lacres e colocávamos no centro do tapete. Quanto mais a pilha aumentava, mais eu sentia meu corpo ansiando por escolhas que eu achava que não deveria tomar. A sala estava repleta de desejo, qualquer um que entrasse ali conseguiria perceber a tensão no ar.

Bêbada, Beta propôs um jogo. O objetivo era fazer a maior pilha possível de lacres de latinha. Aquele que derrubasse sua pilha primeiro deveria cumprir um desafio proposto pelo vencedor. Nesse ponto da história, nada mais justo do que dar voz – ou papel – para que Beta justifique sua ideia.

Primeiramente, eu sou uma mulher adulta, não tenho mais treze anos. Consigo bem
perceber quando alguma coisa não dita está acontecendo, e a energia daquela sala
definitivamente não estava normal. Quase conseguia segurar em minhas próprias mãos
todo o esforço que nós três fazíamos para manter o controle de nossos corpos. Lá pela décima cerveja, comecei questionar a real validade desses esforços.

Estávamos, os três, claramente apaixonados uns pelos outros. Uma vez me disseram que, se nunca te fez sofrer, então não foi amor. Acho essa a frase mais ridícula que já ouvi. Se todos nós parássemos de validar nosso amor com sofrimento, talvez o mundo tivesse menos lágrimas agora.

Voltando ao jogo: Otávio e Petra são pessoas incríveis, mas coordenação motora com certeza não é o forte de nenhum deles. Como eu sabia que ganharia meu próprio desafio, não estava preocupada. Assim o fiz.

— Tá bem, Beta, parabéns. Qual o desafio? Ligar pra ex? Virar uma cerveja? Pode
falar. — Otávio disse com a irritação esperada de um escorpiano com ascendente em
aquário, que detesta perder mesmo os jogos mais bobos.

— Nada disso, meu bem. Você vai dar um beijo na pessoa que você está com mais
vontade de beijar hoje. Não vale mentir.

Silêncio. Aquele tipo de silêncio constrangedor, mas também engraçado. Bem, engraçado para mim, que já tinha lido toda a situação; constrangedor para eles, que ainda não tinham percebido onde a noite acabaria. Esse destino, as estrelas me contaram tempos atrás.

Quando meu namorado começou a vir em direção à minha boca, eu o impedi.

— Não vale mentir, eu disse.

— Beta, mas…

— Vamos ser justos. Aqui ninguém faz nada sem consentimento. – eles me olhavam com certa resistência – Vamos, não temos a noite toda, e minha cerveja já tá esquentando. Inclusive, acho um absurdo que precisei montar essa cena toda só pra gente confrontar esses sentimentos.

E foi aí que aconteceu. Otávio beijou Petra como se ainda fossem adolescentes
descobrindo uma paixão que sempre esteve ali. Me senti presenciando um momento
histórico. E estava mesmo: o início da nossa história. Logo depois, me aproximei.

Uma cachoeira pode ser definida como a queda natural de água. Natural, como nós três ali, deitados no tapete sintético de um chalé qualquer, cercados por lacres de cerveja, despidos das nossas velhas percepções sobre nós mesmos.

Então, aqui estamos hoje para não deixar dúvida de que o amor não precisa fazer
sofrer. Pode ser que faça, e tudo bem. Pode ser também que você se encontre em um
apartamento com vista para o mar em alguns anos com os dois amores da sua vida.
Chego à conclusão de que nosso coração é grande demais para abrigar apenas um amor.


Gabi Guarabyra é uma mulher bissexual cisgênera. Atriz, diretora, dramaturga e professora, é pós-graduanda em Gênero e Sexualidade pela FACED-UFJF e compartilha frentes de trabalho teatral no Coletivo Feminino e no Núcleo Prisma.


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