29. Todos os dias

Os limites do Tempo 
não demarcam nossa história 
apenas se assentam 
em marcas terrenas 
Darlan Lula

O telefone está sobre a mesa assim como todos os dias é dia. Marcos debruça o olhar nele. Não sabe ao certo o que fazer. Sente o gosto amargo da bebida que penetra o estômago. Não sabe o que o levou ao desatino do álcool. Não havia bebido antes na vida. No entanto precisava estalar a língua e porejar algo que não fosse saudável. Sua mente em torvelinho inebriava-se com o líquido consolando os nervos, e a azia não o deixa sobreviver ao contato com o aparelho telefônico. A bebida foi um consolo, mas incomoda a inquieta mente.

Ele olha o telefone. Fica eternos minutos vivenciando a matéria sobre a mesa. A vida ali está exposta como um banquete posto aos porcos. Presencia em si o sofrimento voluptuoso de quem perdeu algo e não sabe o que é e tivesse certa convicção de que a qualquer momento alguém ligaria e diria com a doce voz dura: “Ligue agora mesmo, antes que seja tarde, antes que o mundo resolva esconder de vez o que o aflige, antes que você se torne um penitenciado por não saber o que perdeu, e assim sofrer horrorosamente desse mercado de perdas e ganhos”. E, ao atropelar os olhos naquele aparelho, ele passa a visitar constantemente a confusa mente. A tarde aqui fora gotejando raios tênues de luz mortiça e ele em seu apartamento não sabendo o que fazer da vida, ela presente no quarto, toda incógnita. Ele olha o telefone. O embaço da imagem compondo seu corpo o deixa inquieto. Exagerou na bebida, tinha a certeza quase lacônica de que exagerara, já que não consegue mais suportar os pensamentos e organizar as ideias. Os olhos recheados de preguiçosas veias e as pálpebras sustentando com coragem e dedicação as cores do mundo. Arrefece a garganta abrindo a boca e traga um gole seco de ar. Sente sede e ânsia. Os dentes rangem e a cabeça recosta-se no ombro provocando um estado de vigília. Ressona por alguns minutos.

Esses minutos na vigilância do sono trazem a ele, de uma maneira atormentada, a memória da infância. Num misto de sonho aparente e realidade fantasiosa, Marcos se vê uma criança novamente, percorrendo as ruas de sua terra. As ruas, as vielas e os lotes abandonados eram outra casa repleta de vivência lúdica. Nessas perambulações estranhas provocadas pela vigília veio à cabeça a criança de sua infância, cheia de desejos repletos de carinhos, desvelos que nunca vieram à tona. A criança de Marcos em pé no alpendre da porta de casa, bolinhas de gude à mão, sorrindo para a vida e tendo a sua frente a figura paterna. O pai que nunca lhe dissera nada, nem sequer um afago nos cabelos com seus grandes, longos e grossos dedos de comerciante, o anel de formatura inexistente no anelar da mão direita. Nem sequer um “vem cá, meu filho”, expressão esta substituída por olhos que visam à vaguidão de sentimentos. E a mãe incerta na subordinação. E o filho criança ruminando a indiferença patriarcal, única na presença diária da casa. Crescendo a cada passo, sofrendo a cada gesto. O começo de uma vida sem saudades e sem boas recordações.

No ano em que seu único irmão nascera, ele tinha 20, já estava ausente de casa por quatro anos para estudar fora. Recebera a notícia da gestação com satisfação, sendo que logo depois franziu os cenhos e preocupou-se com a sorte do pequeno diante do pai. Mas o pequeno está crescendo e, graças a experiências outrora vivenciadas e sentidas, ele recebe doses homeopáticas de carinho paterno. Com Marcos ficaram o travo e o rancor, as feridas de uma dor sentida dia após dia no convívio com os outros, pois os filhos e os pais conhecidos e amigos e carinhosos entre si abrem as chagas da sua vivência malsucedida com o seu…

Assim ele vive. Nunca experimentara nenhum tipo de droga lícita ou ilícita até aquele momento. Porém, só lhe bastaram a carteira no bolso e a cara lavada de fios crescidos do dia anterior condenando-lhe responsabilidade para a compra de bebida alcoólica destilada na venda da esquina. Voltara satisfeito, carregando o embrulho num abraço paterno. Entrou a casa e depositou a garrafa sobre a mesa da cozinha. Coçou a sua abestada fisionomia num gesto irrepreensível e deu as costas para o líquido engarrafado. Com passos lentos, marcadamente destinados a um funeral cerimonioso, seguiu para a sala onde se encontrava o aparelho telefônico. Parou a uns cinquenta centímetros dele e, numa atitude hostil, pegou-o como se fosse um bicho feroz pronto para a fuga ou para o ataque, e como se fosse preciso domesticá-lo agarrando-o com força, apertando-o com seguida resolução, para logo depois reanimá-lo com afagos e carícias. Desistiu do intento antes mesmo de ouvir as respostas sintomáticas do aparelho. Era como se não tivesse forças para sustentar a posição. Era aniversário de seu pai e ele queria e tinha de ligar, pois já não via a família há mais de três meses, apesar da curta distância entre uma cidade e outra. Ficou ali, de pé olhando o telefone, espremendo o sumo de uma fruta imaginária entre os dedos, os olhos crispando o excesso líquido e salgado, marejados de intensas sensações. Elevando o antebraço à altura do rosto, Marcos dividiu a angústia de se sentir tão humano com outras regiões do corpo. Novamente com passos vagarosos, porém agora ressentindo-se consigo mesmo, ele retornou à cozinha, avistou a garrafa sobre a mesa, recostou um copo entre os dedos e desatinou a beber no descompasso de ideias.

Agora a garrafa já não é mais a mesma, o líquido está pela metade e Marcos se encontra jogado no sofá feito mosca de asa partida. Já é noite e os móveis e tudo ao redor já não se reconhecem na penumbra. Como que sobressaltado, ele, de um salto, suado e sentindo um gosto acre na boca, acorda. Os olhos, no início incomodados com a situação nova instaurada, perquirem o lugar como fera enjaulada. O gosto acre na boca acentua-se incontrolavelmente e ele se convulsiona tentando lidar com aquilo. A cada investida sua a coisa lhe sobe pela garganta afora, sobrando-lhe um resto de tempo para a chegada no banheiro. A cara enfiada na latrina e a imitação de uma cascata de coisas mal digeridas dão certo alívio a Marcos. A opressão do álcool fora combatida, restituindo-lhe algo. Logo lhe vem um líquido gosmento o qual ele tenta expurgar com sofridas e preguiçosas cusparadas. Seus olhos dorminhosos piscam lenta e intermitentemente ao contato cinzento com a lavagem estomacal, reconhecidamente o almoço e o lanche do dia. Suas mãos abraçam a privada fria que gela o rosto colado a ela. Ele sente que toda a força empenhada para chegar até ali o consumiu ao máximo. E por isso mesmo esmorece ainda mais o corpo ao chão. Como não há mais o que fazer senão esperar o restabelecimento, ele pensa. E pensando chega ao motivo de ter comprado a bebida, e o motivo leva-o ao pai. É aí que lhe vem novamente o gosto na boca, as convulsões e o jorro da água. Sim! água porque já não há mais nada sólido para expurgar. Água e a gosma cuspida, recuspida, lavrada nos dentes e língua. E novamente a paz do corpo e o silêncio em volta, os olhos piscando até chegarem ao sono.

II

Após algumas horas, Marcos acorda sentindo uma profunda dor. Pouco a pouco ele junta os fragmentos ao redor e recombina o vivido. Levanta-se cercado de estilhaços. O chuveiro aberto e as milhares de gotas tocando em seu corpo nu levam-no para o prazer daquele instante. Suas mãos percorrem o corpo em movimentos voluptuosos, as sensações afloram e o cheiro ressequido do álcool escorre pegajoso pelas pernas e desce pelo ralo dando adeus àqueles momentos de cólera fisiológica interna. Marcos quase está feliz na imersão de lascívias agradáveis, mas a brecha de outro instante, o suficiente para perenizar certos acontecimentos, para surgir no Universo um buraco negro do tamanho de nossas inquietações, suficiente a ponto de nos trazer o conforto inescapável da cova, trouxe a ele a memória do pai. A água quente escorre pelo rosto e o que antes era prazer torna-se incômodo, pois ele não pode se enganar, já que sua vida é fria como a privada fria que suas mãos abraçaram momentos antes. E a água continua a incomodá-lo com suas gotas quentes porque tornam seu olhar também quente e avermelhado. E esse mesmo olhar torna-se denso, suado, líquido e crispado a ponto de não se aguentar em suas órbitas e querer sair de suas margens penetrando surdamente no lado de fora; e, quente, torna-se gota e mistura-se às outras já quentes gotas que o incomodam.

A toalha enrolada em seu corpo no meio da sala. O telefone impassível no mesmo lugar. O começo da madrugada já não o deixa ter dúvidas. A provável sentença do pai já estar dormindo cercado de desesperanças diante da total ausência do filho mais velho é como um som agudo ressoando além dos tímpanos do sossego. Marcos sente a profundidade de sua respiração inquieta e pouco a pouco trabalha para que aquele momento não se torne ainda mais angustiante para pulmões já tão oprimidos. A garrafa com o líquido restante ainda está sobre a mesa. Marcos já nem sabe o que sentir, tamanha é a insensatez de sensações. Procura com os dedos o cheiro entorpecente do álcool. Esta fragrância suscita uma leve dor na região dorsal da cabeça e ele a repele instintivamente como a fruta madura caída do pé. A dor arrefece à medida que se veste para dormir; deitando-se tenta pensar em coisas agradáveis, em momentos prazerosos, em instantes indistintos e sem grande notoriedade, mas ainda assim notáveis pelo conforto e paz de espírito, sem constipações interiores. Contudo, o ser humano, por mais que tente ao agradável, tem sempre que se desfibrar perante a própria imagem refletida no espelho, ainda que seja a mais bela figura já vista pela matéria refletora, ainda que esteja contente minutos atrás por haver escapado das próprias imagens chocantes vindas do pulsante coração. E Marcos se desfibra naquele momento, assim como em outros instantes já vistos, ao pensar em uma melodia, e a melodia sugere tambores militares, e os tambores trazem Geraldo Vandré, e Vandré traz sua música Porta-estandarte. Ele que passara a não ter nenhum estandarte em sua vida, lembra-se dos versos musicados: “Olha que a vida tão linda / Se perde em tristezas assim”. Lembra-se em pequeno ao redor da mesa, seu pai triturando o almoço com dentes ferozes. O seu aniversário, ele teria que ligar, mesmo que fosse tarde. O seu aniversário, mesmo que fosse no dia seguinte ele teria que ligar e dizer “Parabéns”. Só não sabia de onde viria a força, só não sabia por que dizer isso. “Na avenida girando / Estandarte na mão / Pra anunciar.” Mas teria que dizer, mesmo que fosse por um instante, só por um instante apenas, o suficiente para amainar os corações. “Olha que vida / Tão linda, tão linda / Perdida, perdida / Tão linda, perdida.” Recosta-se no travesseiro e ressona ao embalo do som moroso de Porta-estandarte ativado por recordações infantis.

III

Marcos, já na rua, segue para o trabalho. Ele nem sequer imagina que sua mente tão atarefada e cheia de rotina diária irá pensar no dia anterior. Ele nem imaginaria pensar em seu pai. Porém foi o que lhe ocorreu. No momento exato em que o pensamento começa a se transformar em reflexão, ele, de prontidão, desvencilha-se e entra em uma padaria. O café quente é sorvido com gosto e excita-lhe o corpo, fazendo-o sentir melhor, mas novamente lhe vem a figura do pai e ele sente um rancor tão grande que dá para ouvir a bile amarga porejar no corpo. O trabalho, a partir daquele instante, ocupa os seus momentos e pensamentos, convidando-o, e obtendo sucesso em seu desígnio, a entrar no mundo exaustivo do recalque.

Alguns dias se passam sem grandes novidades até Marcos receber uma carta. Sua mãe. Ao perceber isso, seu coração contrai-se com tanta força que parece querer voltar à condição de feto, o ser inaugural no princípio humano. Não a abre de imediato, prendendo-se a outros afazeres como se os dizeres presos no envelope fossem a representação contemporânea de uma caixa de Pandora. E ele ainda não se sente preparado para ser a causa de tantas desgraças alheias, bastando-lhe somente a sua condição. Ah! mas a curiosidade mata; se não mata, pelo menos ajuda a matar. Após horas de relutância contida, ali está diante da carta. Tesoura à mão abrindo o envelope e oferecendo chagas ao destino. Lê. Inexorável, distante, sem apelos emocionais, olhos grudados na folha de papel que se apresenta num tom saudoso, maternalmente escrita com mãos carinhosas e cheias de cuidados e desvelos. Os ares de confidência são exalados pelas palavras proferidas. Marcos sabe, no entanto, até onde tudo isso irá se mover. Não demora muito para a mãe tocar no assunto. Fala da pequena festa feita para o marido, os poucos parentes presentes, o filho de 10 anos feliz pelo aniversário do pai, porém todos esses motivos não foram suficientes para agradá-lo, que ficou ansioso grudado ao telefone todo o dia. E assim foi ficando tarde, os festejos encerraram-se, Mariano dormiu no sofá, ao lado do aparelho telefônico, sendo preciso o filho mais novo ir acordá-lo e chamá-lo para a cama. Ele acorda meio assustado olhando para o aparelho. Logo em seguida, franze a testa, pigarreia fundo e diz ao menino: “Vem cá, me dê um abraço. Acho que tenho somente um filho, e este está aqui, ao meu lado agora”. Marcos, ao terminar a leitura, sente o fôlego faltar-lhe. Recobra-se com um gole d’água. Olha para a escrivaninha repleta de trabalhos e provas de seus alunos a corrigir. Pega a carta da mãe, dobra-a e enfia-a no envelope para em seguida despejá-la em uma gaveta qualquer. Senta em sua cadeira confortável e recomeça o afazer diário de profissional respeitável que é.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br


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