Viver é etcétera

Tradição, a grosso modo, diz respeito a 2 pressupostos antropológicos:  1. Pessoas são mortais; 2. Há uma demanda de nexo geracional passado pelo conhecimento.  A  raiz etimológica da palavra tradição no grego (paradosis) possui 2 sentidos: 1. Transmissão de práticas e/ou valores espirituais; 2. Conjunto de crenças. Transpondo essas informações iniciais para o ato e/ou forma na própria existência, nos deparamos com manifestações plurais da tradição no ato do viver, ou seja, da vida em movimento, da experiência como ação. 

Em 1926, com o livro “Israel: Its Life and Culture”, o autor Johs Pedersen diagnosticou que, na cultura Israelita, a memória dentro da liturgia religiosa era um fator de grande relevância dado que, a instrumentalização do termo, teria como significado o pensamento em ação. O lembrar, dessa forma, se encontra num propósito maior da experiência humana, pois diz respeito ao encontro -ou contínua busca- da totalidade que, por sua vez, confere significado a experiência temporal inerente a todo ser humano. Pessoas são mortais. 

Somada a essa análise, o autor indica que, em seus estudos sobre a presença do lembrar no Antigo Testamento, existe um vínculo com a expressão pôr no coração/guardar no coração o que, antropologicamente, destaca o coração como centro da atividade intelectual, como repositório da narrativa geracional conferida pelos antepassados; ao passo que é relacionado também ao coração, a característica da sensibilidade. Ou seja, nesse mesmo centro citado, coexistem a força da tradição e a sensibilidade. A olho nu, a sensibilidade pode nos soar como fragilidade, no entanto, a cultura Israelita potencializou a palavra para que ela atravessasse o tempo dentro da própria temporalidade de cada corpo. Nesse sentido, o lembrar é esperança e, o esquecer, destruição. 

Seguindo numa reflexão daquilo que confere uma boa experiência com o viver -ou até mesmo o que o possibilita-, lembro me da ideia de felicidade. Para Aristóteles (filósofo grego durante o período clássico/ 385 a.C. – 323 a.C.) felicidade estaria ligado a diversos outros conceitos -tais como amizade e prazer- pois, segundo o filósofo, o homem direcionava as suas ações visando esse fim. Já Epicuro (filósofo grego do período helenístico/ 341 a.C. – 270 a.C.) diria que, a felicidade, se alcançaria pela ataraxia, ou seja, uma alma que não se perturba, onde há ausência de dor, inclusive física. Observe que, até o momento, existe um ponto de convergência entre as variáveis apresentadas que é a ideia de plenitude e, a busca por essa dentro do espaço temporal em que exercemos a vida, é rodeado de aspectos que nos desafiam, mas também encorajam. Viver é complexo. Para não só adoçar a experiência, mas também para me reconhecer nela, lanço mão da erudição ambientada pelo sertão de Guimarães Rosa. 

“Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma coisa só – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber?”

Guimarães Rosa.

Em “Sempre sei…” o autor falará da busca pela inteireza, o que não anula o fato dele sempre ter o tido ou vislumbrado. A inquietação do querer, procurar e já ter o faz questionar a complexidade do encontro dA coisa que não se acharia deslocado da experiência de grupo. Acredito que este poema é -no texto aqui construído- chave interpretativa de uma noção profunda de tradição. O que cerca a vida não se confunde com ela, mas a adorna. Tradição/memória/lembrar, felicidade, enfim, tudo isso adorna a vida. Não é via de regra para que não sufoque a autonomia de cada indivíduo, mas também não é um vácuo absoluto pois é meio de esperança e, a ausência dessas composições, pode significar uma descaracterização da sensibilidade humana. Concluo: viver é etcétera (Guimarães Rosa).

*imagem: collage set #4 in Behance by Klawe Rzeczy


Gyovana Machado é Cristã, graduanda em História pela UFJF e formada no Seminário Teológico Rhema Brasil. 


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