Revisita ao Arminho

Quando eu era adolescente, não via muito sentido em reler livros. Até os dezessete anos, eu alimentei a gana de querer ler todos os livros já publicados no mundo, e essa tarefa se tornaria completamente impossível caso eu resolvesse reler qualquer coisa. Eu tinha lá os meus livros com páginas marcadas para os quais voltava, gastando poucos minutos na releitura de trechos marcantes, que faziam palpitar meu coração adolescente; mas reler um livro inteiro?! Jamais!

Poucos anos se passaram, é verdade. Mas nos últimos seis anos… ah, muita coisa mudou. Passei pelo processo de parar de escolher leituras; lia o que chegasse pra mim e aceitava o randômico como um presente do universo. E um derradeiro dia, me surgiu a ideia de ter uma biblioteca apenas com os títulos que me tocassem mais – o que fez com que muitos livros fossem vendidos e doados. Lá se foram os Diários do Vampiro, Jogos Vorazes, livros infantis e paradidáticos dos anos escolares. Menos um: O Arminho Dorme.

Eu estava na oitava série, a primeira vez que li O Arminho Dorme. O ano era 2011, a minha idade era 14, e a minha professora de Português se chamava Vera. E o principal motivo de eu me lembrar de tantos detalhes é o fato de ter sido o primeiro dez que eu recebi em uma prova de interpretação de texto (curioso).

Este dez, porém, não foi por acaso. Eu já tinha me encantado por livros paradidáticos da escola antes, mas nada que chegasse nem perto do Arminho. O imaginário do meu self pré-adolescente foi completamente colonizado pelas imagens de uma Florença do século XVI, regida pela família Médici (patrona das artes), e da vida dessa garota, Bianca, com seu vestido azeviche e seu branco arminho. Fiz incontáveis pesquisas sobre a história da cidade, da família ducal e, especialmente, sobre a protagonista de uma história tão incrível aos olhos de uma adolescente esquisitinha que sonhava com um passado dourado e glorioso. Eu me identificara tanto com Bia de Médici que precisava saber que ela tinha sido real (e, em minha mentalidade estritamente kardecista de então, não pude deixar de cogitar se eu mesma não era reencarnação da menina do Arminho, ao descobrir que, sim, a personagem do livro tinha sido real). Cheguei à escola com um trabalho de excelência, que trazia até mesmo a reprodução fotográfica da pintura citada no livro, feita por Bronzino, e citada na narrativa.

O Arminho Dorme, de Xosé A. Neira Cruz, foi publicado pela primeira vez em 2003. Fruto de pesquisa intensa do autor, o livro é uma ficção histórica contada por Bianca de Médici – a filha bastarda do grão-duque Cosimo I de Florença; protagonista, “Bia, a doce Bia” conta sobre sua vida e suas experiências sob a égide de uma identidade dupla: cobrada em suas atitudes como princesa, desconsiderada socialmente como bastarda. E na lembrança carinhosa do único sobrevivente entre os paradidáticos da minha biblioteca, já com uma outra percepção sobre releituras, reli. Em voz alta. A voz falhou em diversos momentos, confesso.

O Arminho ficara sentado entre os meus livros de maior impacto, esperando calmamente uma revisita da minha parte, e me apresentou uma história que era a mesma, e que não era a mesma, seis anos depois. Dessa vez, os olhos que o leram são de uma jovem-adulta autoconsciente que sonha com um futuro colorido e pacífico; e as páginas verdes, de gramatura alta, escritas em fonte Kepler e recheadas de palavras em italiano escritas por um espanhol me tocaram de uma forma diferente.

Eu não sei bem o motivo que me levou às lágrimas diante das leituras do tarô, da visão do arminho no estandarte sienês ou do coração sempre aberto de Bia; mas entendo que seja mais do que simples nostalgia. À parte de julgamentos anacrônicos que tendemos a fazer de obras literárias a partir de nossas lentes de desconstrução, digo que o Arminho vem envelhecendo bem.

Talvez eu não dissesse isso hoje, caso fosse a minha primeira leitura. Construção de narrativas e de personagens são, atualmente, meu objeto de estudo acadêmico; e eu, com certeza, consigo perceber muito mais sutilezas e falhas nesses processos do que eu era capaz aos quatorze anos. Se me conheço bem, reclamaria da heterossexualidade de Bia e da ausência de qualquer representatividade minoritária, criticaria o pouco desenvolvimento de outras personagens que não a protagonista, me decepcionaria profundamente com o fim da história – que, apesar de inevitável, é um tanto quanto piegas -, e já estaria pronta para transcrever o livro e reeditá-lo, trocando vírgulas por pontos-vírgula e travessões, entre outras frescuras que tenho. Mas o Arminho é a história perfeita que é justamente por não ser ideal (na visão de uma jovem editora em 2020) e, ainda assim, estar envelhecendo bem.

Dezessete anos depois de sua primeira publicação, o Arminho ainda é um livro tocante, que conversa com o íntimo do leitor. Sua narrativa passa longe de fazer pouco de alguém, e mostra, à sua própria maneira, pontos de crítica e educação social (e eu continuei a me identificar com Bianca, mesmo frente a sua heterossexualidade compulsória e a seu gosto questionável para homens). Suas palavras carregam cores únicas, criam imagens quase tangíveis, transportam a mente para uma Florença de quinhentos anos atrás e a mantém lá com cada frase, cada descrição, cada respiro de cada personagem. Dezessete anos depois, o Arminho continua vivo. E talvez isso seja tudo que um livro precisa para envelhecer bem.


Carol Cadinelli é uma mulher cisgênera bissexual. Jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atua como Social Media na Peregrina Digital, assistente de edição na Trama e escritora nas horas vagas.


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