[Arredores] Gralha Edições – Boa Literatura em favor da Cultura

Fred Spada é uma daquelas pessoas das quais você se orgulha de poder chamar de amigo. Poeta, editor da Gralha Edições, revisor e tradutor, o Fred é capaz de fazer qualquer conversa se estender por horas com entusiasmo e profundidade.

Em sua formação, o poeta concluiu licenciatura em Letras e mestrado em Estudos Literários pela UFJF e doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Como poeta, publicou Arqueologias do olhar (Funalfa, 2011), Coleção de ruínas (Macondo, 2014) e Breve itinerário de uma não viagem (Megamíni/7Letras, 2019). Além disso, Fred Spada é uma figura presente no circuito cultural de Juiz de Fora, seja frequentando aparelhos culturais, atuando diretamente em projetos ou conectando pessoas, o que, diga-se de passagem, é uma qualidade invejável de nosso entrevistado. Fred também mantém no Youtube o canal Poesia em JF, com depoimentos de poetas ligados a Juiz de Fora.

Essa semana a Trama falou com o Fred sobre o seu empreendimento com a Gralha Edições, e como ele vê o mercado editorial em tempos de coronavírus.

Acompanhe na entrevista abaixo!

Fred Spada, poeta e editor da Gralha Edições.

Trama: Fred, a gente gostaria de começar com uma pergunta curiosa. Sua formação inicial se deu em medicina, certo? O que o fez largar tudo e iniciar sua jornada nas Letras?

Fred Spada: O caminho até o curso de Medicina se iniciou bem antes de meu interesse pela literatura, como um desejo ou sonho nascido na infância – o que é não é nada extraordinário nessa idade, obviamente -, até que virou algo mais concreto no Ensino Médio. Foi neste período, aliás, que surgiu meu interesse pela literatura, graças à minha professora de Português do 1º ano do Ensino Médio, hoje querida amiga, Helena Rodrigues. Foi ali, e com grande incentivo dela, que passei a buscar leituras para além das indicadas no programa escolar e também a escrever, sobretudo poesia.
O que nasce como sonho de infância, entretanto, acaba encontrando uma realidade bem menos onírica quando começa a realizar-se, por assim dizer, na Faculdade de Medicina. Por volta do terceiro período comecei a me sentir insatisfeito com o curso, sentia que não me encaixava naquele universo profissional, que jamais seria parte dele, mas só na metade do curso eu o abandonei e me inscrevi em Letras num novo vestibular, porque então percebi que minha antiga (e sempre crescente) paixão por literatura e também pelo estudo de línguas poderia, sim, se tornar um meio de vida.

Trama: Como surgiu a vontade de criar a própria editora? Quais desafios você enfrentou durante esse processo?

Fred Spada: Quando começo na Faculdade de Letras, a edição não era algo que tivesse em mente. Entrei no curso já pensando numa carreira acadêmica, em que pudesse me dedicar tanto à docência como à pesquisa em literatura, mas, já desde o primeiro período, comecei também a participar de eventos e publicações de poesia, a estar em diálogo com colegas e professores também eles poetas. Muito por conta disso, publico meu primeiro livro, Arqueologias do olhar, em 2011, pela Funalfa, com recursos da Lei Murilo Mendes, e em 2013 lanço de modo independente uma plaquete, Coleção de ruínas, que ganha no ano seguinte uma nova edição pela então recém-criada Edições Macondo, do Otávio Campos, com quem viria a trabalhar entre 2018 e 2019. De certo modo, estes dois livros foram meu primeiro trabalho com edição, porque coube a mim preparar e editar os originais, selecionando os poemas que comporiam os livros, fazendo cortes, acréscimos, reescritas, e até mesmo lidando com diagramação, no caso da primeira edição da plaquete.
Em 2018, passo a trabalhar na Macondo, e isso acaba mudando meu rumo profissional, ligando-o à literatura de uma maneira muito mais radical do que o seria pela docência ou pela pesquisa acadêmica. Quando saí da Macondo, no final de 2019, abrir uma editora foi, portanto, uma decisão natural, a constatação de que hoje esse trabalho direto com o texto e seu autor me interessa muito mais do que o trabalho de sala de aula.
O primeiro desafio durante esse processo, sem dúvida alguma, foi o de me sentir seguro não só para atuar como editor principal, mas também para lidar com toda uma cadeia de produção, que vai desde a recepção e preparação de originais até a impressão e venda dos livros, sua divulgação e distribuição. Outro desafio encontrado foi a chegada da pandemia de Covid-19, que atravancou boa parte dos processos burocráticos de abertura da Gralha Edições, especialmente na esfera municipal, o que também ocasionou um adiamento dos primeiros lançamentos da editora.
No mais, o diálogo com autores, designers, gráficas, livrarias e demais profissionais da área (quer com os contatos que fiz em meus dois anos de Macondo, quer com os que já tinha antes disso, sobretudo com escritores) facilitou bastante a dar o pontapé inicial da editora.

Trama: Qual é o foco da Gralha, Fred? Quais temáticas e autores você espera ter em seu catálogo?

Fred Spada: O foco da Gralha Edições é a literatura contemporânea, seja de ficção ou de não ficção, com espaço aberto a poesia, conto, romance, novela, dramaturgia, literatura infantil e infanto-juvenil, ensaio, livros de arte, livros-objeto, de autores brasileiros e estrangeiros.
Não buscamos uma temática específica, mas obras de qualidade, que se mostrem inovadoras, que desafiem o senso comum, que tenham de fato algo a dizer. Estamos abertos à diversidade e ao experimentalismo. E temos um posicionamento político claro em favor de uma descentralização dos discursos, dando a autorxs o espaço e a voz que veem diariamente calados, sobretudo no cenário político fascistóide e persecutório em que nos encontramos ao menos desde o final de 2015, quando se inicia o processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff.

Trama: Vivemos hoje no Brasil o pico de um contexto extremamente desfavorável para a cultura, com uma governança negacionista, anti-cultural, obscurantista e truculenta. Ao mesmo tempo, vemos florescer ações de resistência com inúmeros projetos de pessoas que afrontam essa tormenta que passamos, promovendo saraus, slams, fundando editoras de resistência, revistas, a formação de coletivos e pessoas que têm força para criar e fazer circular arte. Como você vê a contribuição da Gralha para o contexto cultural de juiz de fora?

Fred Spada: Em que pese fatos escabrosos da história nacional terem ocorrido na cidade, como a saída da tropa da 4ª Região Militar, então sediada em Juiz de Fora, rumo ao Rio de Janeiro, para dar início ao golpe civil-militar de 1964, ou o episódio da facada envolvendo o então candidato e atual presidente, que prefiro não nomear, em 2018 – ou talvez justamente motivado por tais razões -, o cenário cultural juizforano ganha muita força e projeção, sobretudo a partir de fins dos anos 1960. A cidade teve um Festival da Canção importante, que ocorria no Cine-Theatro Central, com participação de importantes figuras da música popular brasileira; um cena poética forte, em muito devida à atuação do professor Gilvan Procópio Ribeiro, primeiro no antigo Colégio Magister, depois na UFJF, que revelou nomes ainda hoje relevantes e movimentos importantes para as Letras locais, como o D’Lira e o Varal de Poesia, nos anos 1980, ainda em meio a muita repressão. Mais recentemente, o Slam, o Rap e a cultura HipHop, os diversos coletivos que agregam grupos variados e suas importantes discussões e atuações, seja sobre questões de gênero e orientação sexual, étnico-raciais, sociais, etc., vêm ganhando cada vez mais força e espaço.
Mais especificamente sobre o universo da literatura, ao menos desde 2006, quando passo a acompanhar parte da cena local, muito em virtude de minha entrada na Faculdade de Letras da UFJF, vejo o nascimento de diversas publicações, editoras e eventos que movimentam essa cena e dão voz e espaço a atores diversos. Mesmo antes, no final dos anos 1990, havia o zine Propoe, editado pelo DCE/UFJF, que publicava contos, poemas e ilustrações de pessoas da comunidade acadêmica e de outros escritores da cidade. Já nos anos 2000, vemos uma nova efervescência nesse cenário, com o número zero do jornal Parabelo, o sarau Eco-Performances Poéticas, o projeto Ave Palavra, as revistas Um Conto e OGaribaldi, as editoras independentes Bartlebee, Aquela Editora, Matinta e Edições Macondo e os espaços vários que abrigaram seus eventos, além de uma maior cobertura midiática de toda essa cena, sobretudo pelo jornal Tribuna de Minas e o trabalho dedicado do jornalista Mauro Morais.
Nesse sentido, desejo e espero que a Gralha venha a somar, não só com a realização de eventos na cidade ou com a publicação também de autores daqui, mas também reforçando o nome de Juiz de Fora como um polo de cultura de grande expressividade.

Trama: Como você encara a entrada no mercado editorial tendo em vista o agravamento da crise entre as editoras e livrarias em tempos de pandemia?

Fred Spada: O mercado editorial e livreiro no Brasil há muito passa por altos e baixos, e seu mais novo ponto de crise é a iminente possibilidade de taxação do livro (depois de 74 anos de isenção) com a alíquota de 12% referente ao CBS, novo imposto proposto pelo atual ministro da Fazenda em seu projeto de reforma tributária, o que, resumidamente, implicaria o repasse de tal percentual ao preço de capa do livro, que já é relativamente alto no Brasil, sobretudo se levamos em conta o poder de compra de imensa parcela da população. Claro que há outros fatores para que o preço do livro esteja no atual patamar, bem como para que a situação de editoras e livrarias de todos os tamanhos seja de risco.
A tentativa fracassada de crescimento das redes de livraria Saraiva e Cultura, por exemplo, com a compra da Siciliano e o crescimento do número de lojas em todo o país, por parte da primeira, e a compra da Fnac Brasil e da Estante Virtual, pela segunda, levaram ambas à falência e implicaram o fechamento de diversas lojas, a demissão em massa de funcionários e a interrupção do pagamento às editoras que lhes consignavam livros para venda. O pacote de congelamento de gastos governamentais aprovado durante o governo Temer também trouxe imenso prejuízo às editoras (nesse caso, especialmente às grandes), com a interrupção da compra de livros didáticos e paradidáticos, responsável por boa parte do faturamento anual do setor. Além disso, o encarecimento dos aluguéis levou ao fechamento de inúmeras e tradicionais livrarias em todo o país, sobretudo nos grandes centros, mas também em cidades de porte médio como Juiz de Fora. Ainda, parece-me necessário um maior diálogo entre livrarias e editoras, especialmente daquelas com as pequenas editoras, para que os percentuais aplicados à consignação de livros seja revisto e tornado menos oneroso às editoras, que na maioria dos casos veem 50% do valor de capa ficando com as livrarias, as quais estão livres dos custos da cadeia de produção livresca (compra de direitos autorais e/ou de tradução, preparação e edição de originais, design e diagramação, tradução, revisão, impressão, publicidade e distribuição).
Assim, ao menos em relação às pequenas editoras independentes, podemos mesmo dizer que elas fazem um verdadeiro trabalho de guerrilha para levar ao seu público obras de qualidade e ainda (tentar) fazer desse trabalho um meio de sustento, de vida. E parte dessa estratégia de guerrilha é tentar ao máximo lidar diretamente com o leitor, tanto por meio da realização de eventos que o aproximem do autor, como por meio da venda direta, nesses eventos e nos sites/lojas online das próprias editoras, e de campanhas de pré-venda (fundamentais para financiar as edições) ou mesmo de crowdfunding, em alguns casos.
Nesse sentido, com o início e o agravamento criminoso da pandemia no país (criminoso porque diretamente devido ao descaso de um poder público genocida para com a vida de seus cidadãos), restou-nos buscar opções para que nossa atividade não fosse de todo interrompida, como a substituição dos eventos presenciais por eventos virtuais e a ampliação da divulgação e da venda dos livros pela internet. É já nesse cenário que a Gralha surge, e estamos preparados para isso e cientes não só das dificuldades impostas, mas também de alguns benefícios dele decorrentes (como, por exemplo, a possibilidade de mais leitores poderem acompanhar os eventos de lançamento, não importando onde estejam).

Trama: Como você acredita que será o mundo pós-COVID19 para editoras e livrarias? Existe um horizonte otimista pela frente?

Fred Spada: Apesar de todo o cenário de crise que descrevi acima ainda pairar sobre nós, vínhamos acompanhando até o início da pandemia um tímido renascimento/fortalecimento das pequenas livrarias de rua, com alguns casos bem sucedidos em Juiz de Fora, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Goiânia, só para citar algumas cidades, bem como das editoras independentes, que já vinham e vêm conquistando mais espaço nos eventos e feiras literários, nos suplementos literários e nas páginas dos jornais que ainda têm seções dedicadas ao mercado da literatura (esses, sim, infelizmente, cada vez mais raros).
Enquanto não houver uma vacina contra a Covid-19 eficaz e de distribuição ampla no país, no entanto, acho prudente que o atendimento das livrarias e os eventos das editoras se concentrem no formato virtual, por mais que haja queda nas vendas (embora o mês de junho tenha mostrado uma ligeira recuperação do setor em relação a junho de 2019) ou que nós, apaixonados por literatura, sintamos falta de percorrer as estantes de uma livraria, tocar e folhear o livro antes de comprá-lo, ou de ter um livro autografado por seu autor, tirar uma foto com ele, ter uma interação mais direta.
A saúde, a vida, são mais importantes do que a economia, sobretudo do que uma economia cada vez mais excludente e injusta como a nossa.
Enfim, não creio que daria início agora às atividades da Gralha se não acreditasse numa recuperação do setor, ainda que lenta e de longo prazo, e se não acreditasse no talento e na capacidade de quem faz literatura no país. Mas, ao mesmo tempo, sei que essa crença depende também de nossa luta diária contra o crescimento da extrema-direita no país – ela, sim, avessa ao acesso universal a uma educação de qualidade, pública, laica e gratuita, e às diversas manifestações que compõem nossa riqueza cultural e, mais especificamente, literária.

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Entrevistador:

Frederico Lopes é artista, arte-educador, curador, expografista e gestor cultural. Possui graduação em Artes Visuais pela UFJF, pós-graduação pela FAGOC e treinamento profissional em conservação e restauro de papel pelo LACOR/MAMM-UFJF. É funcionário do Museu de Arte Murilo Mendes e do Memorial da República Presidente Itamar Franco. É fundador da instituição cultural Bodoque Artes e ofícios, da Revista Trama e do Museu de Artes e Ofícios Bodoque.



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