Tinta

– Roxo! – ele ouve Beatriz gritar, do outro lado do apartamento, como quem desvenda o maior mistério da humanidade. – Vermelho e azul vira roxo!

Ele ri e revira os olhos levemente, um pouco cansado por precisar fingir animação toda vez que Beatriz vem com uma grande descoberta – ou pelo menos algo que ela pense ser uma grande descoberta.

– Eu fiz alguma coisa errada? – ela pergunta, colocando o pote de tinta roxa em cima da mesa com cuidado, tentando não bagunçar ainda mais as coisas. Rafael não queria responder, mas aquilo não era uma mensagem que ele podia ler e pensar em formas de dizer sem magoar.

– Nada. – ele respondeu, esperando que bastasse.

– Não parece nada. – infelizmente para ele, não foi o bastante

– É só que você faz uma grande coisa de tudo.

– Mas é uma grande coisa.

– Sério? Assim como vermelho e amarelo foi uma grande coisa? Ou azul e verde? Ou a grande descoberta que, na verdade, Ciano é azul?

– É, desse jeito mesmo. E foi você que insistiu em usar “Ciano” e “Magenta”, não tô entendendo sua implicância agora.

– É só que talvez nem tudo precise virar uma história.

E essa foi a pior coisa que Beatriz já ouvira. Mas é claro que tudo precisa virar uma história! Qual é o ponto de se fazer qualquer coisa, se não for assim? Qual é a graça se ela só colocar o tal ciano em qualquer lugar e nunca mais falar sobre isso? Pra que tentar adivinhar o que vai acontecer com o amarelo e o azul se quando acabar vai ser só verde, enquanto poderia ser uma árvore ou um gramado de futebol?

Mas ela não disse nada disso.

– Tudo bem, você está certo.

– Você não vai dizer mais nada? – Rafael nunca esperava respostas curtas. No geral Beatriz tem problemas em guardar suas opiniões pra si. Ela também tem a tendência de esperar que as cores virem outras coisas por si mesmas, ou que alguém pinte a parede inteira pra ela. Beatriz queria que as pinturas fossem perfeitas, mas nunca sabia segurar os pincéis ou escolher a paleta de cores certa.

– Não. A gente pode encerrar esse assunto? E me passa a aquarela por favor.

– Pra quê?

– Eu gosto mais de aquarela.

– Ah, claro. Você adora colocar água nas coisas.

– Oi?

– Nada. Vamos encerrar esse assunto.

– Você não está mais falando sobre tinta.

– Claro que eu estou. Você prefere pintar com aquarela porque você gosta das coisas diluídas. Menos… fortes.

– Isso não é verdade. Eu gosto do jeito que se espalha.

– Você gosta do jeito que desaparece.

– Rafael, me diz o que você tem pra dizer.

– Eu não posso pintar todos os quadros por você.

– O quê? Não seja ridículo. Eu só te pedi aulas de pintura porque você é muito bom nisso, mas…

– Eu não estou mais falando sobre tinta.

E foi aí que ela entendeu; mas entender é diferente de concordar.

Convenhamos, ali dentro daquela tela já tinha informação demais. Camadas e camadas de tinta começavam a se acumular, uma cima da outra. A visão estava um tanto comprometida. Beatriz não precisava de aulas de pintura. Rafael sabia que aquilo tudo era um pretexto para que ela saísse de casa. Ele sabia que ela se sentia sozinha e perdida, mas não existiam cores o suficiente para cobrir todo aquele cinza.

– Certo. E o que você quer que eu faça? Não existe um interruptor mágico na minha cabeça, você sabe. O preto e branco não vão magicamente brilhar em estampas coloridas.

– E não foi isso que eu disse. Mas acho que a gente devia parar com as aulas

– O quê? Porquê?

– Você só tá aqui por medo.

– Não seja ridículo. Medo do quê?

– De você.

Com isso, Beatriz foi embora. Não de um jeito irritado, batendo a porta e pisando forte, apenas foi embora. Lavou os pincéis, colocou as tintas na caixa e foi. Olhou bem pra Rafael; sabia que ele estava certo e que ela esperava quadros demais de alguém que ainda precisava pintar os próprios trabalhos. Ela foi embora, e Rafael ficou ali, pensando o que faria com o pote de tinta roxa que ela deixou pra trás, quase intacto.

Quando se virou pra ver a tela incompleta que Beatriz deixou, reparou que quase tudo era amarelo, vermelho e azul, exceto por algumas flores desenhadas que ainda precisavam ser pintadas. Talvez fosse ali que ela precisaria do roxo. Talvez ali, ela precisasse da sua descoberta.

Ele pensou em chamá-la de volta, mas não. Ele não terminou a tela, e ela também não voltou para pintar os últimos detalhes. Às vezes, um artista deixa uma tela incompleta. Nem tudo precisa de um final.


Gabi Guarabyra é atriz, diretora, dramaturga e professora. É pós-graduanda em Gênero e Sexualidade pela FACED-UFJF e compartilha frentes de trabalho teatral no Coletivo Feminino e no Núcleo Prisma.


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