O que posso acreditar

Nada está acima do amor. O amor é o que dá coesão à virtude, gerando harmonia entre suas expressões. É o amor que concede espontaneidade ao comportamento, desneurotizando a obediência. Sem amor, desempenho religioso algum agradará ao Deus preocupado tanto com o que fazemos quanto com o que somos.” -1

O nosso pantanal queima, a criança dos 6 aos 10 foi estuprada – e outras são submetidas a mesma violência a cada 4 horas -, os livros entram em boca dos homens maus como “artigos de luxo” na prerrogativa de taxação (trazendo obstáculo para o acesso das classes mais pobres), o homem morto foi coberto por guarda-sóis num supermercado que optou por permanecer em funcionamento enquanto o corpo estava lá, estirado; enfim, existe um mundo acontecendo nesse instante e eu não posso -nem consigo- citar todas as notícias do globo, do Brasil, de Minas e Juiz de fora. Percebe? O olhar em escala diminui, as notícias também, no entanto, a complexidade sempre aumenta quando olhamos para uma situação em específico. 

Li há pouco uma frase que expressa a nossa condição subjetiva de humanidade, ela dizia: “Escolher suas batalhas é saber escolher suas ignorâncias.”; quem a disse? Um músico e compositor que, segundo consta em sua biografia, faz “música tecida na esperança”. Marcos Almeida é um dos nomes nacionais de maior coesão em sua produção artística. Ele anela sua fé a produção da letra, uma fé que, cabe destacar, diz dos feitos da e na vida, da experiência, do cheiro da terra, do convívio entre os indivíduos. É sobre o tráfego que encontramos no cotidiano, sobre o que é visível e invisível aos olhos, sobre o que nos marca e o que nos embala nesse breve espaço de tempo em que exploramos o novo e o velho. É preciso o exercício de se esperançar quando as notícias tendem a sufocar, sobretudo quando essas são de natureza plural e te pedem uma resposta que você não tem. 

Quando se encara uma angústia existencial ela, normalmente, está atrelada a fatores que funcionam como combustíveis a experimentação da vida. A mesma angústia que surge quando enxergo uma necropolítica-2 se desenvolvendo e ganhando fôlego nos trâmites e pressões nas grandes áreas que organizam o Estado – executivo, legislativo e judiciário-, é a angústia que me faz olhar para o caso da criança que, por 4 anos, foi estuprada e aos 10 engravidada, é a angústia ao ver o fundamentalismo religioso se desenvolvendo como uma doutrina moral, preocupado com o legislar numa ordem pré estabelecida sobre o que concebem como certo e errado. Assim como pontua Focault (1999), o poder opera de forma difusa e multilateral, portanto, disponho de uma lente que enxerga essa doutrina moral entranhada não apenas no discurso assumidamente religioso, mas também na reutilização desse na política, o que em muito nos revela mediante a análise dos indivíduos que compõe as pastas do atual governo. 

Nesse sentido, consigo vislumbrar essa tal angústia que, em menor ou maior escala, provoca a aflição de ser e estar. O que em muito delibera o incômodo, é também o afago e a benesse. Por esse motivo iniciei o texto com uma citação que não é sobre o amor enquanto uma abstração ou um discurso de -apenas- coerência dentre incoerências. É sobre um desempenho religioso como prática dO Amor. Isso envolve uma responsabilidade que neutraliza o egoísmo e o fanatismo, a medida que ressignifica a militância daqueles que, de fé, se movem. Não é por caridade meramente, deve ser por justiça social. Digo assim que, o que me trouxe angústia, é o que dá cabo a esperança. Cabe apenas questionar, como num exercício diário, a natureza e simetria da tal fé que, ainda no século XXI, gesta no outro um mensagem que, dentre muitas coisas, diz: “(…) corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene!” Amós 5:24. E, enquanto isso, canto:

“Deus, onde estás?

A igreja arrancou o sino

O homem esqueceu o menino

Fez castelo de ouro e prata e perdeu a vida

Ah! Acende toda luz

Iluminando a terra que convive com a dor

Sem esperança”

Marcos Almeida – Deus, onde estás?

Nisso, continuo a caminhar – e a acreditar. 

NOTAS:

-1  COSTA, Antônio Carlos. Teologia da Trincheira: Reflexões e provocações sobre o indivíduo, a sociedade e o cristianismo. 1. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017. p. 98

-2 Para maiores informações, ver:  Mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

Imagem: Photograph by KangHee Kim. 


Gyovana Machado é Cristã, graduanda em História pela UFJF e formada no Seminário Teológico Rhema Brasil. 



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