Herança – Capítulo 2: Desconfiada

Com as mãos apoiadas na testa, cotovelos encostados na mesa de vidro de seu consultório, ele pensava em como poderia escapar de mais aquele embaraço.

– Quem é Alciléia?

– Ninguém, meu bem, apenas uma paciente.

– Como apenas uma paciente? Sua secretária acabou de dizer que ela ligou dizendo que não vai mais poder te encontrar no local combinado. Que merda de paciente encontra com você fora do escritório? Diga, Rubens.

– Ora, meu bem, para com isso. Você sabe muito bem que essa coisa é comum por aqui, principalmente com as pacientes socialites. A mulher tem uma vida corrida e vai se encontrar comigo para me apresentar alguns exames médicos. Só isso. Não crie chifres em cabeça de cavalo.

– Eu estou tentando aqui, Rubens, é me preservar e não ter os meus chifres, entendeu? Se eu souber que anda me traindo, eu capo você! E ainda faço você engolir as bolas.

Ele a observou assustado, comprimindo os olhos, para em seguida esboçar a sua expressão mais sorrateira. “Ah, vem cá, vem, minha linda. Eu sei o que você quer”.

Ele a puxou para perto de seu peito, abraçou-a com determinação e lhe deu um grande beijo, apertando com força as suas carnes. Uma coisa que Eliana nunca teve foi corpo esquálido, isso sempre lhe faltou. No entanto, o que era escasso de um lado sobrava do outro, em sua língua afiada para tudo. Displicentemente, a princípio, ela mostrou irritação, tentando, sem grandes esperanças, desvencilhar-se dele; logo, já estava jogada em seus braços como prisioneira de bom grado. A coisa começou a esquentar, ele a ergueu e a sentou na mesa de trabalho; e começaram a se esfregar, até serem interrompidos pela secretária. Ela, acostumada já com esses flagras, disse ao doutor que a paciente marcada naquele horário já estava à espera. Os dois se recompuseram.

– Almoça comigo hoje?

– Não posso, meu bem, vou ter que comer por aqui mesmo. A minha agenda hoje está uma loucura. E você, não devia estar dando aula?

– Meu amor, hoje em dia, damos aula através das tecnologias. Meus alunos já estão instruídos com cabos ethernet e Wi-Fi. Eles têm que sair do ostracismo em que se encontram para correrem atrás de suas próprias demandas de estudo. Método moderno de ensino, meu bem!

Eliana era professora universitária do curso de Sociologia. Sem ser, claro, uma unanimidade entre os alunos; aliás, acabava sendo o contrário, todos a criticavam pelo tal método e não frequentar o curso. Aparecia raramente e, no final do período, mandava as notas para os seus alunos por e-mail – sempre notas iguais e altas. E assim ia vivendo, com o Departamento cada vez mais a deixando de lado.

– Estou doida num vestido que vi numa revista sobre a moda do carnaval deste ano. Preciso comprar o tecido pra Noêmia fazer pra mim. Quero estar deslumbrante no dia do baile de carnaval no clube.

– Ok, meu bem, agora precisa ir. Nos encontramos em casa, mais tarde. Abraçaram-se. Eliana despediu-se de Angélica, a secretária, pegando o elevador rumo à loja de tecidos mais cara da cidade.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br


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