Memória

— Então é isso. Você está realmente decidido? — Ele me pergunta com um tom tão firme que me leva de volta para todos os anos que vivemos juntos em apenas alguns segundos. Ele percebe que sua voz saiu um pouco do planejado.

O Vinicius sempre teve o hábito de manter sua postura o mais turva possível para os outros; a transparência de sua verdadeira personalidade só era vista em poucas ocasiões. Quase sempre eu era testemunha ocular de seus desvios, que arranhavam superficialmente a porcelana daquela imagem impecável.

— Desculpa. Não quis falar assim, você sabe. — Silêncio. — Sabe, não sabe? Ei, eu te amo, Caio. Preciso que você pense no que você vai estar fazendo comigo quando tomar sua decisão.

— Com você? Já parou pra pensar no que eu estou fazendo comigo? Melhor, o que você está fazendo comigo. Você mora dentro de mim há tanto tempo que não lembro mais do meu silêncio. Você plantou raiz por aqui, e agora eu preciso do jardim de volta, Vinicius.

— Será que precisa mesmo? Talvez essa grama sintética toda seja espaço o bastante pra nós dois, você não acha?

É muito difícil argumentar quando queremos estar errados. A batalha entre dizer minha verdade ao mesmo tempo em que ela é tudo que eu quero esquecer é uma das mais dolorosas que já enfrentei até então.

Conheci Vinicius faz dez anos. Desde o primeiro momento, ele foi meu porto seguro. Nossa primeira troca de olhares aconteceu na escola. Tínhamos, os dois, 15 anos de idade. Ele me mandou um bilhete no meio da aula de história, dizia que achava meus olhos bonitos. Aquela idade em que tudo é difícil demais, mesmo não sendo de verdade. Desculpe, isso não é justo. Não devíamos minimizar as dores adolescentes só porque somos adultos; afinal, só conseguimos suavizá-las depois que já passamos por elas. A verdade é que nem sei se sou tão adulto assim. Muitas vezes, percebo meus reflexos de adolescência tomando o controle das minhas ações, principalmente na presença do Vinicius.

Começamos a namorar com 16 anos. Nenhum de nós dois era assumido para a família na época, o que foi um grande evento. Um grande evento nas nossas cabeças: pra ser justo, ambas as nossas famílias já sabiam antes de ouvir de fato. Nem tudo precisa de palavras, isso é outra coisa que aprendi com ele. Aos 16 anos, tudo parece que vai durar pra sempre. Todos os bons momentos eram cristalizados em uma moldura imaginária que visitaríamos anos mais tarde, bem como todos os momentos ruins – que, por vezes, ainda parecem pequenas giletes dentro de um ciclone de sentimentos mal resolvidos.

Que pena que tantas molduras se perderam no meio do caminho. Muitas das giletes se soltaram com o vento e acabaram pousando em terrenos distantes também. Nossa memória não é tão boa quanto gostaríamos que fosse. O ser humano tem uma tendência estúpida de se superestimar em coisas banais. Quantas vezes eu estive em uma conversa e disse para mim mesmo “Eu nunca vou esquecer esse momento” e no dia seguinte já não me lembrava de mais do que seis palavras daquela linda interação. Será mesmo que foi linda? Difícil dizer. Tudo que sobrou foi um ingresso de cinema.

— Não tem mais espaço, Vinicius. Não tem. Olha bem pra esse quarto, as caixas, as paredes. Tá tudo cheio de você, e você me dói. Você não percebe o quanto você me dói, talvez esse tenha sido o problema esse tempo todo.

— Você também me dói, Caio. Você me dilacera, me queima, me arranca pedaço por pedaço e eu estou aqui. Eu estou dentro do quarto, das caixas, pendurado pelas paredes. Mesmo assim, mesmo com tudo isso, eu nunca ameacei ir embora.

Isso não era verdade. Três anos antes, tivemos uma briga daquelas que eu achava eu só podia ver em filmes independentes e conceituais que, de alguma forma, conseguem amenizar e dramatizar romances ao mesmo tempo.

Por muito tempo, minha personalidade sempre foi comparada ao fogo. Explosivo, difícil, incontrolável. Agressivo é o adjetivo que me faz encolher pra dentro de mim mesmo e selar o mundo contra o meu desequilíbrio. Naquele dia de agosto, parecia que Vinicius tinha seu discurso pronto e decorado contra mim. Ele chegou no nosso apartamento com uma lista mental de todas as vezes que eu fui a grande decepção desse relacionamento. Todas as vezes que estar comigo foi difícil demais. Naquela noite, ele disse que ia embora, eu implorei para que ele ficasse. Talvez eu devesse ter ficado quieto. Ele se foi sem dar explicações, deixando apenas um bilhete amarelo que lia: “Eu te amo, mas preciso de tempo”.

Vinicius voltou na manhã seguinte com cheiro de cachaça e perfume de outro homem. Eu o recebi de braços abertos, lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto. Nunca mais falamos sobre aquele dia; talvez por isso mesmo ele esteja tentando apagá-lo da nossa história nesse momento. De quem é a culpa se nenhum de nós dois viu a curva no acostamento enquanto dirigíamos há 80km/h? A culpa é de quem dirige ou de quem distrai o motorista?

— Caio, me escuta. As coisas podem ser diferentes. Não precisa queimar tudo que a gente já viveu.

— Precisa. Se não queimar vai ficar guardado, acumular poeira. Pior, se ficar guardado eu vou revisitar e revisitar o tempo inteiro. Tudo sempre igual, imortalizado ali, sem crescer, sem sair do lugar.

— Então a gente cresce. É isso que você quer? Crescer? A gente cresce. A gente cresce até o céu, ultrapassa todas as nuvens, se encontra com gigantes de terras imaginárias e anjos celestiais que tentam se esconder de nós.

— Essa responsabilidade não é só minha, é nossa. Não adianta a gente querer separado. Era tudo muito bonito, só não é mais.

Silêncio.

— Você se lembra de quando eu viajei pra Gramado sozinho? Eu te trouxe algumas folhas daquelas que parecem a bandeira do Canadá. Nunca vi ninguém sorrir tão bonito por causa de folha. Olha como elas estão agora, Caio. Você deixou secar, quebrou tudo.

— Só algumas. As que estão nas caixas quebraram, mas algumas ainda estão presas em alguns cantos.

— Isso é verdade. Vai deixar elas ali, ou vai tirar também?

— Existe uma coisa engraçada sobre presentes. Mesmo que a gente saiba quem foi que deu eles pra gente, nem sempre eles trazem memórias. Essas folhas inteiras são isso, um presente oco, virou só decoração.

— A quebrada não?

— A quebrada me faz lembrar de você. Sei que não deveria resumir 10 anos nesses pequenos estilhaços secos mas é maior do que eu. É tanta folha, Vinicius. Parece que vai me enterrar qualquer dia desses.

Não consigo me lembrar exatamente o momento que comecei a chorar, mas agora meus olhos já estão vermelhos e minha visão duplicada pelo reflexo das lágrimas nos meus óculos. Estão na minha frente todos os ingressos de cinema e teatro. Todas as cartas, recados, bilhetes. Toda a memória de papel. Que frágil é o nosso passado. Separo os ingressos dos melhores filmes e peças. Retiro as entradas de grandes shows e eventos. Essas lembranças não são só nossas, são minhas. Eu vivi todos esse momentos, não preciso de você para sorrir ao relembrá-los.

Todo resto é uma pilha de papel com tinta de caneta. Tantas palavras, tantas promessas, planos, frases bonitas que um dia me fizeram acreditar naquele para sempre adolescente. Continuo ouvindo sua voz falando na minha cabeça; a voz me pede para não desistir.

Você saiu pela porta da frente dois anos atrás e eu ainda tenho diálogos com você dentro de mim. Acendo o fósforo. Vejo a tinta virar cinza, os selos das cartas começarem a derreter. Sua voz começa a ser substituída pelo trepidar do fogo. O fogo não apaga a memória assim, na hora, mas apaga minhas chances de revisitá-las. Logo, logo, só vão sobrar algumas palavras dos últimos 10 anos. Não é mais você quem controla as sementes, eu sou o que sobrou de nós dois. Eu sou o que transborda da nossa separação.

Obrigado, e adeus.


Gabi Guarabyra é atriz, diretora, dramaturga e professora. É pós-graduanda em Gênero e Sexualidade pela FACED-UFJF e compartilha frentes de trabalho teatral no Coletivo Feminino e no Núcleo Prisma.



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