Estéreo – Capítulo 1

Vou começar pela metade da história.

Não vai ser pelo início “eu nasci e cresci”…  porque anterior aos dezessete anos, considero que, praticamente, eu apenas respirava e deixava as funções vitais de meu corpo se realizarem, incluindo o que fosse de exercício do pensar, sem tomar frente a nada.

Realmente, eu não tinha opinião – ou, se ela existia, era irrelevante.

Eu não tinha estilo próprio; era uma cópia das coisas que via na televisão, mas de forma bem fajuta.

Eu não tinha nada além de pensamentos que me foram colocados através da família e da sociedade em que eu habitava: então, resumia-me a nada fora do comum (o que fosse considerado comum para aqueles meios) e nada de extraordinário.

Então, como naqueles filmes juvenis em que no décimo terceiro aniversário a criança descobre ter poderes mágicos que mudarão sua vida – se você não assistiu desses, saiba que era bem comum ter mães sereias ou ser filha de bruxas nessas obras -, no meu décimo sétimo aniversário, finalmente, acordei para o que se chamava vida.

Creio que grande parte da mudança se deu em função da mudança de colégio.

Antes, eu estudava num lugar em que se dividia entre meninos e meninas que eram consideradas populares; os casais mais famosos, dos quais todos queriam ficar próximos no recreio e ter amizade, para poder beijar garotos do mesmo meio e ir para um bairro que, naquela época, era o point – onde ficávamos sentados, fazendo nada, e fingindo estar fazendo nada quando estávamos tentando chamar a atenção de algum rapaz mais velho que nos ignorava (o que era errado e só hoje percebo o quanto).

Depois, fui para uma escola onde todas as pessoas eram diferentes e também semelhantes, mas existia uma singularidade de gestos e jeitos que transformou aquele ambiente em uma porta para outra percepção de mundo.

Lá, iniciei uma visão política sobre o que era ser mulher e o como deveria lutar para ser respeitada, ter direito de fala e não ficar na sombra de um menino que se achasse superior (ainda que o feminismo não fosse pauta e nem tão comentado ou expressivo); entendi que as pessoas se dividiam sim em grupos com os quais se identificavam mais, por músicas ou pelo cigarro que se fumava; e que a vida, infelizmente, seria dessa forma, na qual eu me sentiria inclusa e não inclusa em diversas situações.

Descobri amizades que se importavam com a conexão além do físico, e que era mais importante rir junto do que ser aparentemente agradável para algum rapaz. E, principalmente, descobri que a sexualidade não se limitava a heteronormativa (palavra que nunca imaginaria existir naquele tempo) e haviam casais de meninas e de meninos que caminhavam livremente, de mãos dadas e de cabeça erguida.

Foi aí que entendi que todo aquele antigo e arcaico e estúpido modo de se falar que sempre foi adotado perto de mim para se referir a sexualidade de outra pessoa era errado. Porque nunca fomos religiosos em minha casa, e eu somente ouvia que Deus criou o homem e a mulher para viverem juntos e mais balelas do tipo – quando, na verdade, se existia um Deus, ele criou as pessoas para se amarem e viverem em harmonia, se respeitando, tal como me foi ilustrado na nova escola.

Conheci o respeito as pessoas que eram diferentes de mim.

E com esse respeito, conheci o mundo.

E começa aí a minha parte da história.

Eu tinha dezessete e uma grande vontade de desbravar esse mundo que me fora apresentado. Eu tinha dezessete e já tinha beijado na boca algumas vezes. Eu tinha dezessete e uma sopa de hormônios gritando dentro de mim. Eu tinha dezessete e queria fazer o que eu achava (erroneamente) que toda menina daquela idade tinha que fazer naquela idade.

Nesse ponto, eu comecei a entender o desejo. A atração.

Eu não namorava, não tinha nenhum envolvimento fixo; e tinha pressa. Mas, também, não queria nada que fosse contra tudo o que eu imaginava – e nem sei se o que eu imaginava era algo bom ou não.

Eu não conhecia o amor como conheço hoje (e ainda duvido se o conheço totalmente). Então, tudo o que já havia sentido era intitulado por paixão. E apenas tinha me apaixonado uma vez, não sendo correspondida.

Todas minhas amigas tinham idealizações de príncipes encantados que surgiriam, cairiam de amores por elas, se tornariam os primeiros homens nas suas vidas e sabe lá o que aconteceria.

Eu só queria alguém que me respeitasse, que fosse legal comigo e que não quisesse nada sério, porque estava definitivamente sem intenções de namorar naquele momento. Porém, estava disposta a esperar esse cara legal aparecer e me receber.

Eu tinha urgência.

Apesar das vontades crescentes, eu acreditava que tudo surgiria no momento certo – como ainda creio.

Só que esse momento certo apareceu com outro momento que não era o que eu imaginava que aconteceria – mas que era para ser também o momento certo de aparecer.

Todos com quem eu conversava namoravam ou se relacionavam de alguma forma com pessoas do sexo oposto. Tudo o que eu conhecia de desejo, em mim, sempre fora manifestado em relação a pessoas do sexo oposto. Todas as bocas que eu beijei foram de rapazes.

Até ela aparecer.

Não foi paixão e tampouco foi amor. Não foi algo que seja possível transcrever em palavras. Mas foi algo.

No instante em que eu a vi, foi como se meu corpo congelasse por alguns instantes e voltasse a funcionar movido por uma descarga elétrica de neurônios antes nunca aparentes.

Ela era linda.

Sempre fui de admirar as pessoas pelos seus traços e contornos, mas era diferente dessa vez.

Ao passar por ela, uma única vez na vida, cruzando o corredor do colégio a caminho da sala de aula, ela sorriu um sorriso de educação e de modo formal que desmontou todas as minhas estruturas.

Eu não tinha apenas a achado bonita, eu a queria.

Eu estava a desejando.

A imagem de seu sorriso se fez forte com seus lábios marcados pelo batom e que fizeram os meus se umedecerem como se dissessem para os dela “me beijem”.

Eu queria beijar aquela mulher nunca antes vista.

Tudo o que aconteceu a seguir em mim foi uma manifestação de medo, excitação, e de pensamentos falando que eu estava louca.

Louca por desejar uma mulher.

A assimilação da sexualidade era fácil e simples de compreender quando se tratava de pessoas alheias e não de mim mesma.

Pensei ser um delírio ocasionado por qualquer motivo tolo; contudo, eu queria gritar aquela sensação de estar com algo agarrado na garganta que deveria ser gritado para mim mesma.

Como eu poderia ter me atraído tão de imediato por uma mulher se nunca passou pela minha cabeça a possibilidade? Como eu poderia ter me atraído por uma mulher sendo que eu estava ansiosa para perder a virgindade com algum rapaz que fosse decente? (Deixando claro que este termo se faz horrível pois perdemos a chave de casa, a carteira, a hora… a virgindade não é algo que se perde ou se encontra para tal frase).

Com quem eu poderia falar a respeito sendo que todas as amigas que tinha nunca mencionaram nada próximo dessa situação para que eu pudesse me sentir menos desconfortável?

Fui consumida por silêncios sufocantes; pensamentos que me matavam; por náuseas de segredos. Era como se estivesse pensando em algo errado e, se eu externalizasse, poderia ser presa por tal ato.

Meu reflexo no espelho jogava de volta a mentira que crescia em tentar esconder que eu não estava bem. Eu fingia ainda mais que estava tudo normal.

Os dias continuavam, a loucura aumentava e, simultaneamente, eu conheci um garoto. O que me deixou mais confusa, ainda mais sem ter com quem conversar.

Ele era primo de um amigo e, em um episódio corriqueiro de colégio, nos encontramos para buscar seu auxílio em um trabalho.

Educado, simpático, atencioso. Nos encontramos uma vez, e mais uma e mais uma.

Até que, de modo extremamente fluido e sem nada que fugisse da minha vontade, foi com ele que a porta para a vida sexual se abriu. Por alguns instantes, eu esqueci de tudo o que tinha acontecido e absorvi a novidade, contando às amigas, dividindo as experiências e me sentindo feliz por ter acontecido da forma que eu imaginava que fosse.

Mas todas as noites, antes de dormir, vinha na memória aquele segredo escondido bem no fundo de mim, para se manifestar e informar que ainda estava vivo, independente de eu ter concretizado o que eu julgava ser minha maior expectativa – esse algo não dito insistia em se equivaler em intensidade.

Bissexualidade era uma palavra bem longe de ser conhecida por mim e, menos ainda mencionada pelos meios de informação. A internet não era como hoje, as redes sociais eram bem limitadas, e assuntos desse cunho eram coisas para tratar com psicólogos.

Naqueles momentos, eu só conseguia entender que havia algo errado em estar desejando uma mulher que eu só vira uma vez e ainda ter gostado de estar sexualmente com um homem. Tudo atiçava meus passos para o caminho do precipício de não saber o que acontecia internamente.

 – Eu tô te achando meio pra baixo esses dias, tá tudo bem?  – Ela.

Ana.

De todas as amizades, Ana se fez a mais próxima. Tínhamos gostos musicais parecidos, falávamos o mesmo tipo de bobagem, riamos das piadas uma da outra quando as demais não achavam graça.

Eu a acompanhava quase diariamente até um ponto onde ela ficava à espera de seu ônibus, e que era caminho para eu seguir a pé para casa após as aulas.

 – Tá sim, tudo bem.

 – Tem certeza, Bi? – Ela era uma das poucas que me chamava por um apelido carinhoso, em vez do nome Bianca. – É alguma coisa sobre aquele cara lá?

– Não, não! Imagina, com ele tá tudo bem. Ele foi embora né? Não lembro se comentei com você. Uns dois dias depois que a gente ficou. Mas não é nada com ele, não.

Foi como se o sujeito tivesse caído do céu para satisfazer meu sonho e, em seguida, partido para outro destino, possibilitando tudo ter acontecido da forma que eu almejava.

 Então o que tá pegando? – Ela falava de um jeito mais largado, palavras soltas, voz forte, firme.

– Não sei se você vai achar estranho…. Não sei se eu posso falar. – Afinal, não saberia dizer se minhas amigas estariam dispostas a entender.

– Tenta. Meu ônibus ainda demora.

Eu busquei as palavras certas, abaixei o tom da fala, como se fosse algo vergonhoso o que diria.

– Você já se interessou por alguma menina?

Ela gargalhou.

Deu uma risada que era apenas isso, uma risada. Não parecia nada além de ter achado graça do meu comentário e tornou tudo o que eu achava ser coisa de outro mundo, deste.

– É isso?  Ela ainda ria e falava em tom normal, sem se preocupar com as pessoas ao redor. – Tava achando que é algo grave, sei lá. Mas poxa, supernormal. – Pausa para recuperar o fôlego após rir de mim. – Eu já fiquei com uma menina uma vez.

Meu mundo caiu.

Após tanto tempo remoendo tudo e tanto como se fosse de fato pecaminoso, Ana transformara todas as sensações em leveza e em um estado de normalidade que até me assustou.

– É… – Eu estava tímida, apesar de mais segura em saber que podia falar com ela. – Eu não sabia com quem conversar e nem se alguém entenderia. Mas isso tá acabando comigo.

– Cara é normal, relaxa. Quem é a menina?

– Aquela moça que foi no colégio há duas semanas, lembra?  Após isso, nunca mais a vi.  Nunca senti isso antes, foi como se ela tivesse ligado alguma coisa dentro de mim.

– Sei! Sei sim! Ela era bem bonita mesmo. Mas cara, relaxa. Não é o fim do mundo.

Não era mais o fim do mundo igual já tinha sido.

– Fico mais calma agora sabendo. – Até consegui sorrir aliviada. – E… Você gostou de ter beijado?

– É um beijo. Normal como todos os outros. A diferença é que é uma mulher, só isso. De olho fechado ninguém percebe nada. – Ela se aproximou, em tom de deboche, mas com respeito. – Agora você tem que beijar pra descobrir se vai gostar ou não e matar essa curiosidade.

– Eu não tenho como beijar uma menina. – Eu falava aos sussurros. – Não vou perguntar pra alguma estranha e nem tenho menina pra perguntar. Vou ficar sem graça de fazer isso.

De fato, somente descobrimos as coisas que gostamos e não gostamos ao experimentar.

– Ah, eu posso te beijar então.

Ela disse e eu fiquei sem reação.

Seu ônibus chegou, ela se despediu e eu fiquei parada  muda  e sem saber sair do lugar.

E se eu gostasse de beijar uma menina, o que significaria? Porque tinha algo bem certo dentro de mim dizendo que eu ia gostar.


Barbara Pippa é nascida em Juiz de Fora, participante em antologias de poemas e contos. Acredita em astrologia e muda o cabelo de acordo com o humor.



Galeria: artistas para seguir na quarentena

Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.



Clique na imagem para acessar a loja virtual da Bodoque!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *