Dos tempos que se foram, mas não passam: os ensinos da infância e a responsabilidade do eu com o outro

Algumas memórias atacam quando cutucadas. Esse é um fenômeno recorrente em minha vida; acredito ser esse o motivo das risadas em público desacompanhadas de uma piada externa, ou de alguém que as provoque externamente: a mágica acontece num instante interno e pronto. Sem muitas justificativas, sou puxada a passados que, em algumas circunstâncias, não querem passar. Isso é ruim, mas é bom.

Com o dia das crianças, eu consegui me lembrar de certos juízos e valores – na época, inquestionáveis – que moldavam a minha forma de expressão no mundo. Aumentando a lente, posso dizer que comecei a pensar na minha relação e nas concepções sobre individual e coletivo. Nunca fui uma criança solitária, mas sempre preservei o que, hoje em dia, compreende-se por solitude. Ter o meu espaço não apenas físico, mas também de desenvolvimento amplo das ideias, era fundamental para que eu conseguisse dialogar com o mundo a minha volta; caso contrário, eu dispunha de um humor pra lá de irritante e, assim, afastava qualquer possibilidade de juízo claro e constante pelo dia. Já chorei quando meu pai, passando em frente o ponto onde eu esperava o ônibus após a escola, não me viu e seguiu em frente. Segurei o choro até chegar em casa (ok, umas lágrimas caíram pelo caminho) e, por lá, desabei; era como ter visto O oásis no deserto mas ter esfregado o olhos e ter me conscientizado de que era apenas um delírio. Minha responsabilidade individual, quando desfocada no/do outro, gerava apenas delírios em mim – ou seja, quando não vejo aquele que não sou eu, me afogo em ideais que respondem apenas às minhas demandas mas que, ao fim e ao cabo, não passam de delírios.

Um dos conselhos pertinentes na História é olhar para o passado a partir do presente – ou seja, inverter a lógica da linha do tempo para quebrar o paradigma invisível de que o tempo é linear e progressivo; horrores acontecem pelo caminho. Por exemplo: falava-se em desenvolvimento contínuo no século XX (lembre se do clima Belle Époque na Europa), que seria como um trem sem os freios apontando e seguindo para destinos gloriosos; no entanto, houve um acidente pelo caminho, e o causador dele tem por nome “guerras” – sobretudo aquela que mobilizou grandes potências de sua contemporaneidade: A Primeira Guerra Mundial, que deu o tom para o início do século. O mundo é um moinho, já diria Cartola.

Quando me estiquei na reflexão individual-coletivo, portanto, não pude deixar de lado o que é o meu presente -ou como está o presente em que vivo. Dessa forma, consegui tirar algumas conclusões prévias para entender os absurdos que encontro pelo caminho – não em uma tentativa de os justificar, longe disso, mas para complexificar algumas irritações que surgem em mim quando olho para o outro ou até mesmo pra mim.

A assimetria/simetria é a baliza que sempre acredito ser auto evidente em qualquer esfera do conhecimento, seja ele teológico, político, econômico, etc infinita (cabe dizer que digo dos campos onde tenho certo tipo de atuação e que me mantenho atualizada). Nesse primeiro citado, me desenvolvi em todos os sentidos durante a minha formação cidadã na pré-adolescência, adolescência e início da juventude. A religiosidade sempre foi motivo dos meus afetos e também desafetos; por isso, acredito eu, esse ser o ambiente em que mais presto a minha observação. A ideia de missiologia – ou seja, a propagação da Mensagem em que se crê – sempre passou pelo fio do testemunho que, numa linguagem mais clara, se traduz como ser aquilo que se crê e fala. Assim sendo, percebendo que a integração da fé cristã converge no ponto da “vida e vida em abundância” (Jo 10:10), é um tanto quanto assimétrico enxergarmos os prédios físicos lotados em um presente onde se tem um vírus disseminado e que tem matado sem a escolha de um padrão ou tipo ideal de pessoas (é óbvio que existem pessoas mais vulneráveis, mas as exceções apenas demonstram que ele ainda é o desconhecido). De toda forma, concluo que a assimetria desses espaços se dá pela escolha de não manutenção da vida; portanto, o abandono do testemunho como aspecto fundamental da vida cristã. Indo um pouco além na argumentação, percebe-se uma projeção – errônea – dos conceitos de soberania divina e de comunhão para justificar e legitimar a aglomeração nesses espaços. Sendo mais clara: a narrativa que se constrói gira em torno do argumento de que “deus não permitirá a disseminação e contágio do vírus enquanto nos reunimos fazendo a sua vontade”; a igreja prédio é um espaço fundamental pois é onde se gesta a comunhão e, sem ela, há um desgaste no que se entende sobre ser igreja. São afirmações tão cristalizadas e inquestionáveis que legitimam aglomerações e distinções com relação aqueles que repensam esses usos e desusos do carimbo divino. Ora, a imagem de Deus como um micro administrador das nossas vidas, que dá conta das nossas irresponsabilidades, é criada pelo capitalismo para sua sobrevivência, pois, se antes se justificava a tirania como escolha divina, hoje se justifica o culto aos egoísmos como uma necessidade que, no entanto, é compartilhada entre um número ínfimo de cidadãos dispostos a abdicar da coesão e equilíbrio em nome de uma agenda que não leva em consideração o coletivo.

Recebi uma mensagem por esses dias de um rapaz que estava triste com o que havia sofrido nesses espaços e que, por ele, deveríamos colocar fogo nos prédios, mas que não o fazia pois tinha bom senso. Concluo esse texto dizendo o mesmo que disse a ele, pois, de toda forma, sou parte desse espaço: “- Às vezes, tudo parece tão errado que a solução se apresenta assim pra gente: vamos botar o prédio abaixo e começar do zero. Mas com calma e sabedoria, conseguimos (em nome de Jesus) dialogar melhor nos espaços de fé cristã”.

Pois bem, se a transcendência coletiva tem sido benéfica para os que experimentam dela, isso eu não questiono; na verdade, estou longe de pôr uma interrogação na experiência do outro, mas sou uma das vozes que permanecerá questionando: seria essa atitude uma condição de delírio?

– esse questionamento pode ser estendido para além do espaço aqui abordado.


Gyovana Machado é Cristã, graduanda em História pela UFJF e formada no Seminário Teológico Rhema Brasil. 



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