Editorial – A Trama no Barraco

Recentemente, no dia 25 de setembro deste 2020 fatídico, dois episódios de discussões entre pessoas anônimas causaram certo estardalhaço nas redes sociais e chegaram aos noticiários. Os episódios aconteceram nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, ambos em áreas nobres (entenda-se: áreas frequentadas por muitas pessoas com algum dinheiro, e por algumas pessoas com muito dinheiro). Os vídeos dessas ocorrências logo viralizaram: “Barraco no Leblon”; “Barraco no Gero”. Mas “barraco” por quê? E o que isso tem a ver com a Revista Trama? Em síntese, é o seguinte: nossa liberdade vem de saber o que está por trás de “barracos” assim…

Não que a liberdade da nossa revista venha das intrigas intestinas de um casebre improvisado instalado na Rua Dias Ferreira, claro que não! Na verdade, a nossa liberdade – a liberdade de nós todes, não só do pessoal da revista – vem da percepção que temos do poder das palavras (“Palavras, ai, palavras!/ Que estranha potência a vossa!”, já dizia Cecília Meireles no “Romanceiro da Inconfidência”); vem da percepção e da incorporação desse poder, de seu usufruto intencional, consciente. Porque é nelas, nas palavras, que reside a única possibilidade real de libertação das pessoas. E é isso que a gente aqui na Revista quer ajudar a tramar…

Então: “barraco” é o nome vulgar da “construção habitacional” (não há sarcasmo aqui, por favor! o sarcasmo está na indiferença de quem não se aflige com pessoas vivendo em condição tão desumana!) ainda muito comum em comunidades muito pobres Brasil afora, as “favelas”. Usada nas várias manchetes que noticiaram as discussões nos bairros chiques do Rio e de Sampa, a palavra “barraco” assume um valor metonímico – ou seja, veicula uma relação parte pelo todo: o “barraco” (a parte) passa a significar a “favela” e, potencialmente, qualquer coisa que haja nela (o todo).

A metonímia (essa relação de continuidade entre parte e todo) não é só um recurso estilístico, uma “figura de linguagem”, como muites de nós aprendemos na escola. Não! A metonímia é um mecanismo cognitivo, algo que nossa mente faz naturalmente, o tempo todo. Com a metáfora acontece a mesma coisa – e quem se interessar em saber um pouco mais sobre isso pode dar uma olhada nos estudos dos linguistas estadunidenses George Lakoff e Mark Johnson, ou em alguns da professora Margarida Salomão (brasileira e ex-reitora da UFJF).

Aqui, o que nos importa é mostrar que, quando se fala em “barraco no Leblon” ou “barraco no Gero”, está também se dizendo que algo aproximou, no plano do pensamento, bairros ricos e favelas. Nos casos em questão, esse algo não foi a generosidade ou o senso de cooperação mútua – tão recorrentes nas comunidades pobres quanto escasso nas cercanias burguesinhas -, mas, sim, aquilo que muita gente preconceituosa, elitista e ignorante imagina ser o mais comum nas localidades menos abastadas: a desordem, a agressão, a falta de urbanidade. Em suma, “barraco no Leblon” é uma forma preconceituosa e elitista de dizer, por metonímia: “surpresa: gente mal educada no bairro nobre”.

Talvez você que me lê agora esteja pensando: “Que nada! Isso é chute! Não dá pra ter certeza disso!”. Engano; dá, sim. Tanto é que, alguns dias depois do ocorrido, já cientes de que as pessoas envolvidas eram arquitetas, médicos, etc, e de que a manchete infame causava prejuízo à imagem daquelas localidades ricas, os jornais e sites de notícia de maior credibilidade trocaram a expressão “barraco no Leblon” por “caso Leblon”, “briga no Gero”… Está tudo no Google, é só procurar. Esse é um forte indício de que a expressão preconceituosa causou algum mal estar nas redações. Pelo menos isso.

É, a ligação entre as palavras e as coisas não é tão transparente quanto pode parecer (a bênção, Michel Foucault!). Estar atento a isso é lançar âncora na materialidade de nossas relações sociais, é assumir e exercer uma parte da “estranha potência” das palavras. E é aí que o papel da Trama começa a aparecer, entende? Na busca por ajudar a esclarecer um pouco mais essas coisas aparentemente tão confusas… Só que, para isso, a gente precisa falar um pouquinho de Linguística. É rápido, a gente promete.

Pois bem: palavras são sinais, são a parte material (sonora) das línguas; línguas são códigos, isto é, sistemas organizados de sinais convencionados (as palavras); esses códigos só podem se estabelecer porque o cérebro humano é estruturalmente predisposto para o trato com eles – ou seja, para sua compreensão e re/co-produção; essa predisposição “orgânica”, típica da espécie humana, tem o nome de linguagem.

Para simplificar um pouco as coisas, vamos apelar para a metáfora: nosso cérebro (o órgão físico, esponjoso) é como um hardware (de um celular, por exemplo); a linguagem é o nosso software mais abrangente, nosso sistema operacional (o IOS ou o Android instalado), que dá funcionalidade ao hardware porque permite tanto a interface do usuário (externo) com o celular (sua operação interna) quanto a organização de todo o sistema do aparelho, agilizando a interação entre os apps também instalados; as diferentes línguas são apps menores, de alguma forma facultativos, executados dentro do ambiente do sistema operacional.

Quer dizer: o Homo sapiens interage com o mundo por meio da linguagem; ela, por sua vez, permite a cada e a todo hardware (o cérebro, o indivíduo) o trato com diferentes formas (diferentes códigos) para impressão e/ou expressão do mundo; as palavras são parte essencial de um código específico, o verbal, que, como recurso expressivo, alcançou, sobretudo por motivações históricas e socioculturais variadas, certa prevalência ante aos demais códigos (como a pintura, a dança e a música, por exemplo). Entretanto, essa prevalência não significa que as palavras sejam capazes de “traduzir” o mundo exatamente como ele é.

Na verdade, é muito questionável essa coisa de “o mundo como ele é”; o mais provável mesmo é que exista algo semelhante a uma infinidade de mundos, cada um deles mais ou menos à feição de quem os olha, ouve, prova, cheira ou sente (concreta ou abstratamente), e depois relata sua experiência a quem está à volta. Só para exemplificar essa afirmação, a Física já comprovou que um mesmo objeto pode ter, ao mesmo tempo, tantas cores quantos forem seus observadores – tudo em função de fatores objetivos, como ângulos de observação, acuidade visual, entre outros. Os pintores impressionistas exploraram muito esse fenômeno óptico, e uma boa amostra disso é a série de quadros da Catedral de Rouen, de Claude Monet.

Voltando às palavras, esse perigo nelas é difícil de perceber e de explicar – e é exatamente isso que estamos tentando fazer aqui. É que, por estarmos tão acostumados a elas, desde tão jovens, na maioria das vezes não percebemos o quanto elas, as palavras, são incapazes de dar conta da real diversidade das coisas do mundo. Ou seja: em geral, acreditamos, de maneira meio ingênua, que as palavras são as coisas, ou, no mínimo, que cada palavra dá nome a uma coisa só, sem margem de erro, independentemente de quem lide com essa coisa ou com essa palavra. Mas não é assim.

Porque, por um lado, como já vimos, palavras são parte de códigos, e a funcionalidade dos códigos é refém de uma boa dose de convenção, de acordo entre seus usuários; por outro lado, as palavras imprimem e expressam visões de mundo, e tais visões de mundo podem diferir muito entre si. Essa zona nebulosa de significados e sentidos – quase um Triângulo das Bermudas entre palavras, gentes e coisas – é a origem da potência da língua, mas também de seu perigo: pessoas com visões de mundo parecidas tendem a se agrupar em torno da tal perspectiva compartilhada, ou seja, em torno de uma mesma ideologia. Diferenças ideológicas tendem a gerar estranhamentos mútuos de variados graus de frequência e intensidade.

E é precisamente desse ponto de tensão que rebentam tanto a poesia quanto as guerras.

Enfim, por trás da aparente graça da expressão “barraco no Leblon”, está o carimbo de uma ideologia. Uma visão de mundo que soma à pobreza econômica tudo de ruim: incivilidade, violência, indisciplina… desonestidade, falta de brio, de inteligência… falta até de direito à vida e ao bem-viver. Tudo isso, por trás da aparente graça da expressão “barraco no Leblon”, e de tantas outras, semelhantes.

É preciso estar atento e forte para lidar com essas armadilhas. Língua e linguagem têm suas teias…

Nós, por outro lado, temos a nossa Trama.


Luciano Nascimento é mangueirense, filho, marido, pai, professor, flamenguista, psicopedagogo… mais ou menos nessa ordem. É, também, idealizador do projeto Dê Efiência.(www.deeficiencia.com.br) E-mail: prof.lcnascimento@gmail.com



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