Estéreo – Capítulo 4

– Eu beijei outra menina.

Falei assim, do nada e como quem não queria nada, fingindo ser um assunto qualquer e ter trazido à tona apenas para passar o tempo da aula que estávamos sem paciência para assistir.

Ana olhou para trás, sem virar muito o pescoço, mas pude perceber um pouco de surpresa no seu rosto.

Me aproximei mais, ficando praticamente debruçada em seu ombro, ainda assentada na mesa detrás.

Ficávamos no fundo da sala  turma do fundão  mas prestávamos atenção quando era do agrado e evitávamos as matérias que realmente não nos pertenciam.

– É? – Ela deu um meio sorriso, que arrisco dizer ter sido irônico. – Foi mais rápido do que você imaginou então. E como foi?

– Foi bom. – Não tinha sido como foi com ela. Mas realmente foi bom. – Foi interessante.

– Então você agora tá realmente confirmada, legal. – Não era uma pergunta.

 Acho que sim. – Abaixei ainda mais a voz, para que ninguém escutasse. – Mas devo isso a você.

Ela riu, discretamente e se encerrou o assunto.

Percebi que aquela mulher que trouxera ao ar minha sexualidade havia sido apenas um ponto, como se realmente eu estivesse presa em correntes e necessitasse que alguém aparecesse com a chave para me libertar.

Ela me libertou, e eu consegui correr para o mundo que me esperava.

E passei a admirar o que antes eu não percebia nas pessoas, nas mulheres e, especialmente, na própria Ana. Cada detalhe que antes era apenas comum, se tornou novidade e magnífico.

Aconteceu o que acontece com grande parte das pessoas que eu conheço quando dá o primeiro beijo em uma pessoa do mesmo sexo: eu me apaixonei.

Eu estava encantada e absolutamente apaixonada por Ana.

Todas as mulheres que fizeram parte da minha vida posteriormente e com as quais eu conversei sobre esse assunto, concordavam e também diziam ter sentido a mesma coisa em seu primeiro contato assim.

Parece que havia uma generalização em relação ao primeiro beijo desse aspecto. Além de ser especial  por ser o primeiro de fato a abrir portas ao mundo o qual pertencemos  era como se ele transformasse aquela pessoa que foi beijada em um ser totalmente único e diferente, incapaz de se parecer com os demais.

Hoje, analisando, eu continuo tendo certeza do que senti. Eu estava realmente apaixonada por Ana. Nós combinávamos em vários aspectos e nosso beijo foi a junção que faltava.

Na vida já me apaixonei diversas vezes, de várias maneiras e cada paixão se tornou exclusiva a seu modo.

Algumas paixões são menores, menos intensas e acabam com a mesma rapidez que iniciaram. Algumas são fortes e duradouras, e se fazem lembrar pelo resto da vida, mesmo após o fim. Algumas são correspondidas, outras não.

Minha primeira grande paixão foi por um rapaz que nem sequer me desejava. E para ele, eu era capaz de  estupidamente  dar o mundo. Ele me tinha como amiga, mas eu queria mais. E nunca tive mais. Até hoje me recordo de tudo o que senti naquele período e, não me arrependo de nada.

Prefiro me arrepender de ter feito e vivenciado, de ter ido atrás mesmo que não tenha dado certo e quebrar a cara por isso, do que passar uma eternidade imaginando o que poderia ter acontecido se eu tivesse feito algo.

Quando me declarei para ele, foi sutil sua forma de negar que era recíproco e a vida seguiu.

Mas, a Ana, eu não poderia falar o que sentia. Era um medo que tinha em mim maior do que o próprio sentimento e do que a vontade de dizer.

Era tudo confuso ainda, eu era incapaz de ter certezas sobre a vida e, como dizer para uma amiga que se gosta dela? (Ainda desconheço esse jeito).

Cada dia era uma luta para evitar olhá-la com uma cara de boba apaixonada, para evitar rir demais de alguma piada que ela contasse, para evitar me aproximar demais fisicamente.

– Acho que você precisa seguir em frente na descoberta, e aí vai acabar esquecendo a Ana. – Mauricio era a única pessoa que sabia.

– Será?

– Tenho certeza. É porque foi seu primeiro beijo com uma menina, eu também me apaixonei pelo meu primeiro cara. Comum.

– Então é o melhor a fazer.  Apesar de não ter certeza sobre.

Geralmente, eu deixava a vida me levar e não buscava pessoas para ter encontros no meio do caminho. Foi a partir desse momento que iniciei uma nova perspectiva em começar a procurar contatos para ter tais momentos.

Era complicado, sem a internet, sem aplicativos de relacionamento. Tinha que ser no “boca a boca”; tinha que ser explanando para outras pessoas o que eu estava a procura.

Evitava falar disso com Ana, tentando levar normalmente nossa amizade e ignorando toda e qualquer motivação de gritar meu desejo.

Mas, éramos amigas e amigas conversam sobre tudo, então, acabávamos chegando a esse ponto, do qual ficava inevitável fugir.

– E aí, você vai levar o encontro adiante? – Ela falava tudo e sobre tudo com a maior naturalidade, me fazia sentir confortável em poder dividir meus pensamentos.

– Vou. Amanhã vamos nos encontrar.

Eu havia sido apresentada via mensagem de texto para uma amiga de um amigo de um amigo.

Éramos adolescentes, e a única possibilidade de encontros reais eram durante o horário de aula. Cabulávamos aula sim, para poder dar beijo na boca. Eu não era a única, e tinha apenas começado a fazer isso tardiamente, quase próximo dos últimos anos do colégio  e aquele era o meu último.

Era errado, claro, faltar aula. Mas era em função de poder viver.

Era em função de poder ter experiências e momentos que jamais teríamos a oportunidade em outra ocasião. Éramos jovens e queríamos tudo para aquela hora  e ainda, dependendo do que for, quero para ontem.

– Vou sair durante o intervalo. – A diretoria se limitava a fingir que não via e não entrava em contato com os pais, o que ajudava ainda mais nosso golpe de sorte. – Aí amanhã de manhã te conto como foi.

– Beleza. – Ana não demonstrava ciúmes ou chateação, e isso causava em mim uma necessidade de que ela sentisse essas coisas. – Tô curiosa pro seu terceiro beijo.

– Eu também. Tô me sentindo meio promíscua. – E ri.

– Porque tá ficando com as pessoas? Pára! Você tem o direito de ficar com quem quiser, com quantas pessoas quiser, como quiser e sem ser chamada de nada por isso! Somos livres, meu bem.

E de fato, somos. Somos livres para ficarmos com quem quisermos, como quisermos e quando quisermos, ninguém tendo nada a ver com isso.

As pessoas têm o costume de cuidar da vida alheia e da frequência das relações que elas têm, se preocupando demais com quantos homens/mulheres uma mulher se encontrou em determinado mês; quantas bocas beijou numa balada  é o machismo incorporado no dia a dia, limitando a possibilidade de sexo casual apenas para os machos.

Mulheres tem desejos, necessidades, prazer. Mulheres querem fazer o que querem fazer, e não é um homem que vai dizer o que ela deve ou não. Hoje temos mais consciência disso, apesar de ainda existir e ser extremamente forte essa forma de machismo, e temos de ir contra cada vez mais para que seja entendido a liberdade feminina como uma obrigação perante a sociedade.


Barbara Pippa é nascida em Juiz de Fora, participante em antologias de poemas e contos. Acredita em astrologia e muda o cabelo de acordo com o humor.



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