[Arredores] RPG e Cultura, com Igor Tancredo

Quando pensamos em arte e cultura, sempre nos lembramos do cinema, da literatura, das artes plásticas, entre outras formas de expressão amplamente reconhecidas. Mas você já parou para pensar no quanto os jogos carregam arte e cultura em seus enredos e estéticas? E em como esses jogos podem funcionar enquanto ferramentas de mudança social?

Desde os anos 80, os Role-Playing Games – ou RPG – vêm se popularizando cada vez mais. Nessa modalidade, os jogadores assumem personagens e criam suas próprias narrativas – as quais trazem em si espaço livre para as expressões particulares de cada jogador, o que torna o jogo rico em possibilidades de representatividades diversas, fortalecimento de identidades, conscientização sobre problemas sociais, entre outros; além, de, claro, consistir em um exercício criativo sem igual.

Em Juiz de Fora, o RPG vem sendo popularizado principalmente pelo Covil, projeto de narradores de aluguel idealizado pelo estudante de jornalismo Igor Tancredo e que, atualmente, vem se tornando um negócio de sucesso. Essa semana, a Trama conversou com o Igor Tancredo sobre a cultura e a arte do RPG. Rola pra baixo pra conferir a entrevista!

Juan Barezzi, Lu Castelo e Igor Tancredo, em gravação para o Covil
Foto: Rafael Bouças

Trama: O Covil é um modelo de negócio muito inusitado, e com certeza é o primeiro em JF. De onde surgiu o Covil?

Igor: Bom, inicio de 2019, eu estava trabalhando numa agência de publicidade aqui de Juiz de Fora, como estagiário. Um dia, eu recebi uma ligação de um conhecido meu; ele sabendo que eu jogava RPG desde novo, falou que tinha um grupo de amigos querendo jogar, mas ninguém para fazer o jogo acontecer (assumir a função de narrador) e me pediu para assumir essa função. Toda quarta, nós nos encontrávamos para jogar, e diante dessa necessidade do grupo, pensei que outras pessoas poderiam querer jogar também e não tinham a oportunidade. Nisso, em fevereiro de 2019, eu criei o perfil do Covil no Instagram, para falar de RPG e, quem sabe, conseguir uns bicos como narrador de aluguel. Aos poucos, foram surgindo pessoas interessadas e eu fui montando as mesas.

T: E por que você era A pessoa que sabia mestrar enquanto uma mesa inteira de gente querendo jogar não sabia? De onde vem a sua relação com o RPG?

I: Eu comecei por volta dos 12 anos; via alguns primos jogando nos encontros de família e me chamaram pra jogar. Com 15, eu comecei a montar minhas próprias histórias, para jogar com alguns amigos. Para que o jogo possa ocorrer, alguém tem que assumir a função de narrador (ou mestre de jogo, um termo que eu não gosto); basicamente, essa é a função que escreve e conta a história que os jogadores, através dos personagens que eles criarem, viverão.

Quando esse grupo me convidou, eu já havia falado que fazia essa função e que gostava de fazer esse papel – geralmente, ninguém quer ser o narrador, porque dá trabalho e é meio cansativo; a parte mais legal do RPG é jogar, viver essas histórias, por isso não existem muitos narradores por aí.

T: Além de narrar RPGs, você também já fez parte de alguns projetos de escrita de ficção. Quais você percebe que são as semelhanças e diferenças entre a narração e a escrita de ficção?

I: Eles são bem semelhantes, mas a diferença crucial é que, na escrita, você controla tudo o que acontece, no inicio, meio e fim. Uma aventura de RPG é elaborada pelo narrador ou narradora, mas executada em conjunto os jogadores e jogadoras. Além disso, cada jogo possui regras e mecânicas, que avaliam sucessos e fracassos em determinadas situações. É como se uma aventura de RPG fosse uma narrativa viva, onde um resultado no dado pode decidir se tudo vai dar certo ou não. Você pode se preparar o quanto quiser, mas grande parte ainda é improviso, pois nunca se sabe o que pode acontecer. Um problema criado para o jogo pode ter soluções que o narrador não enxergou, e é a habilidade de se adaptar que te faz um bom narrador.

T:  E nesse processo de adaptação, você enxerga o ofício de um artista?

I: Eu tento me ver como um artista, pela função de criar uma história que cause sentimentos e sensações em quem estiver ali comigo; mas, ao mesmo tempo, por não ser uma função comum, é difícil de enxergar e principalmente fazer com o que os outros enxerguem isso.

T: Mas enquanto escritor, você se enxerga enquanto artista, certo?

I: Eu digo que sim, tento me sentir assim, principalmente para valorizar meu trabalho. Tem muito do que eu sinto e penso naquilo que escrevo, seja para as mesas de RPG ou para textos normais. O processo de criação é o mesmo; eu penso: o que eu quero dizer com isso, e o que eu quero que quem consumir isso sinta? – e, a partir disso, eu penso em um sentimento ou ideia e desenvolvo a história baseada nisso.

T:  Dentro dessa disparidade que você percebe entre o reconhecimento do escritor e do narrador de RPG, o que você sente que falta para que o RPG possa ser considerado amplamente enquanto arte, assim como diversas outras formas de entretenimento?

I: Acho que falta uma visão de ir além do hobbie e encarar também como um produto além da diversão. Mesmo dentro da comunidade do RPG, há um grande receio quanto pagar por isso, menos para os que são produzidos na gringa. Atualmente, no Brasil, nós temos criadores incríveis, produtores de conteúdo que desbancam facilmente coisa da gringa. Mesmo assim, enxergar isso como um mercado é como se fosse uma morte do hobbie para algumas pessoas. Falta apoio até mesmo da própria comunidade.

T: Nesse momento, ser narrador de RPG é o seu principal job. Você imaginou, algum dia, que isso seria possível?

I: Até hoje eu penso nisso, na forma como cresceu e como tem crescido, na comunidade que criamos e em todo o feedback positivo que temos recebido. Eu sempre falo que o Igor de 12 anos estaria muito orgulhoso de quem eu sou hoje, por trabalhar com as mesmas ideias fantásticas da infância. O Covil é meu job principal desde junho do ano passado; ainda é instável, mas nos últimos três meses tem criado uma renda legal. É um sonho, e eu tenho muito, mas muito orgulho desse trabalho – algo que não tive com nada até então. Meu fundo de tela no computador é uma foto de uma gravação que fizemos e eu coloquei ali pra nunca esquecer o porquê eu faço isso.

T:  E qual é esse porquê? O que te motiva – além, claro, do amor pelo RPG?

I: Eu guardo um print de uma mensagem que recebi de um amigo meu, onde ele fala sobre como o meu trabalho ajudou na vida dele, nas relações dele, e sobre como o espaço do Covil é um lugar saudável, onde você pode entrar e esquecer todas as m***as que tem lá fora. Eu me emociono muito quando recebo uns feedbacks assim, porque, pra mim, sempre foi muito mais que um jogo – é sobre amizade, é sobre criar laços e compartilhar momentos bons. É sobre criar memórias. É muito bom acessar o servidor do Discord e ver a galera lá jogando, até mesmo outros jogos, entre eles, sem a presença de ninguém do Covil. Marcando de darem roles (antes da pandemia), ou de só encontrar no canal do Discord e ficarem jogando conversa fora. Pessoas que, em outras situações, nunca se conheceriam. Gente do Sul do país, do norte, tem gente de tudo quanto é canto.

A gente sempre vê nesses livros e filmes, como Senhor dos Anéis, sobre grandes jornadas e tudo mais, e a gente gosta disso, gosta de saber que não tá sozinho, mesmo com a distância. A gente, inclusive, tem um lema, que é: “só te julgamos e te tiramos se você for fascistinha e/ou desrespeitar alguém” (risos)

T:  Pegando esse gancho: Como você percebe o RPG enquanto ferramenta de transformação cultural?

I: RPG é politica, e por mais que tenha gente que não gosta de ouvir isso, é politica. Num jogo, você enfrenta situações similares [às da vida real]; afinal, as referências que temos são as nossas próprias histórias. Vários professores usam as mecânicas do RPG para ensinar e emular situações, até mesmo psicólogos em tratamentos. RPG é um jogo imersivo e muito bom para apresentar situações como racismo, abusos, etc, sem criar algo tóxico. É uma forma de desenvolver empatia, sem ter que viver determinadas situações de verdade.

É claro que: isso tem que ser feito com cuidado. Quando faço uma história que envolvem temas mais sensíveis, eu converso com o grupo antes. Tudo tem que ser acordado e os limites de cada um respeitados. Não é porque existe estupro, por exemplo, que eu vou colocar isso num jogo como forma de tornar mais real.

T: E sobre o RPG enquanto cena, enquanto espaço cultural: a modalidade chegou ao Brasil no final dos anos 80, início dos 90; é um contexto relativamente novo. Como você percebe a consolidação da cultura do RPG no Brasil? E quais são as perspectivas de quem vê de dentro, construindo, como você?

I: Tem gente que diz que a era de Ouro do RPG foi nos anos 90. Pra mim e para muitos, isso tá rolando agora, com diversos jogos nacionais sendo produzidos, financiamentos coletivos dando super certo. O RPG não dialoga mais com o estereótipo do nerd; ele vai muito mais além. Ontem mesmo, uma amiga minha começou o financiamento de um livro de RPG onde capa é uma elfa, pirata, gorda. NUNCA que eu sonhei que ia ver uma capa de livro de RPG assim – os antigos sempre valorizaram aquela ideia fetichista de colocar um padrão bizarro, longe da realidade.

Hoje, a cena do RPG é absurdamente plural, e a comunidade que tem formado a partir disso [é muito diversa]. Falo com tranquilidade que [hoje] conheço mais mulheres narradoras, narrando as vezes só para mulheres, do que o contrário; vejo que uma parte da comunidade LGBT também tem encontrado no RPG uma forma de se expressar. É um mundo fantasia, e eu sempre falo que se tu pode lançar uma bola de fogo pela mão, você pode se relacionar com quem você quiser. Nessa nova comunidade, não há espaço para homofobia, transfobia, racismo, entre outros. Ainda acontece, infelizmente; mas cada vez menos. E mesmo se você for hétero, cis, branco: poder criar personagens totalmente diferentes de você é uma experiência incrível. A gente só sempre orienta que, se for criar um personagem com uma identidade minoritária, que faça com respeito, sem estereótipo.

T: Quais são os próximos planos do Covil? Cê tá com ideias novas pra trazer? Ou cê tá fazendo algum trampo de escritos por fora, tá com algum projeto nesse sentido?

I: O Covil começou a fazer live, durante a pandemia, junto com meu sócio, Juan Barezzi, nós trazemos jogos não só de RPG. Eu e ele temos uma abordagem diferente um do outro, ele curte mais o jogo e chama a galera que nos acompanha pra jogar também. Eu gosto de jogar enquanto vou trocando ideia sobre as coisas que eu penso, meio que como uma terapia e acabo usando o jogo com base pra isso. Nas lives de RPG, nós fazemos duas por semana, uma ela narra e outra eu, ele na sexta e eu no domingo. As lives tem sido nosso carro chefe desde que começamos e tem dado super certo. Ideias tem várias, principalmente porque também faço um programa de entrevistas, com a galera do RPG e das Lives por aí, sempre com o descompromisso com a qualidade do audiovisual, bem trash msm. Vamos voltar a gravar nossos vídeos explicando sistemas, cenários e tudo que envolve o rpg e isso vai para o nosso canal do Youtube e perfil no instagram

Fora isso, tem as mesas em off do Covil, que são as mesas dos narradores de aluguel, que a gente chama o pessoal pra jogar e os jogadores pagam a gente; o nosso Catarse, que a gente bateu a primeira meta hoje; os seguidores da Twitch, que pagam a gente pela live, e dá esse suporte pra gente – inclusive, teve um cara que a gente conheceu pela live, o Porquinho (ele usa esse nome), ele é um anjo, que ele comprou um livro de RPG pra mim porque ele queria jogar e não tinha ninguém, e aí ele virou pra mim e disse “vai fazer mais sentido você ter isso e usar comigo do que eu comprar pra mim e nunca usar”; então a gente criou uma comunidade bem legal [em torno dessas plataformas] – até bem blogueirinha mesmo, de receber bastantes coisas de editoras, de parcerias, e tudo mais; mas é sensacional essa comunidade que a gente criou através das lives. Antes de a gente mostrar pra fora, com as lives, a gente já tinha uma comunidade aqui em Juiz de Fora, que é uma galera bem unida; mas, com as lives, a gente alcançou um público maior e com retornos tanto financeiros quanto pessoais. Eu sempre friso isso, que o retorno pessoal, pra mim, é muito importante; saber que o meu trabalho faz diferença para alguém é uma questão muito foda pra mim, dá uma sensação que eu nunca tive antes, em nenhum outro job.

T:  Qual pergunta você gostaria que eu tivesse feito e não fiz? E qual a resposta para ela?

I: Acho que não tem nenhuma pergunta, mas tem sim uma coisa muito importante que eu quero falar: O Covil RPG não sou só eu. Sou eu; o Juan Barezzi, que é meu sócio; a Lu Castelo, nossa produtora, que faz os nossos vídeos e edita vez ou outra; o Rafael Bouças, que é o nosso cinegrafista oficial, e também edita quando eu não consigo pegar; o João Scaldini, que faz a nossa parte de marketing mais densa e técnica, de programar coisas, landing page, a página de produtos que a gente tá começando a pensar; a Lara Bissaggio, nossa ilustradora oficial, que ilustra as nossas mesas, as personagens que a gente cria; e o Didico, que fez todos os nossos layouts da Twitch. Então, eu queria deixar claro que não sou só eu; que tem outras pessoas e que eu não conseguiria ter feito nada do que a gente fez sozinho.

 

Acompanhe o Covil RPG pela Twitch e pelas redes sociais!


Sobre a Entrevistadora:

Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atualmente, é editora na Trama, Social Media na Peregrina Digital e escritora nas horas vagas.



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