No cemitério, uma flor: sobre lembranças e esquecimentos

Desde criança, tenho o hábito de visitar cemitério no dia de Finados. Lá em casa, sempre nutrimos carinho pela memória dos mortos, hábito herdado de nossos antepassados. Guardo em um “doce” lugar da memória a minha empolgação para auxiliar minha tia na pintura dos túmulos da família, em Simão Pereira (MG). A cor escolhida era sempre o “azul cor de céu”, apesar da atmosfera tipicamente cinzenta e chuvosa dessa data. Aquela chuva fina e persistente, que cai como lágrimas de Deus a abençoar as almas dos que não mais habitam esse plano, confortando as mentes dos vivos que convivem com as eternas cicatrizes da perda. “Hoje, o dia está chuvoso como se fosse Finados”. Até hoje ouço comentários do tipo, sobretudo das pessoas mais velhas.

No entanto, se nesse dia o céu poucas vezes nos sorria com seu azul exuberante, por outro lado, nunca o encaramos como um dia pesado, fúnebre e de tristezas medonhas. A alegria da família reunida, o carinho de minha mãe na colheita das flores no jardim, o prometido picolé comprado no bar ao lado da pracinha após a missão cumprida no cemitério, tudo isso alegrava nossos corações, não obstante a dor da lembrança dos entes queridos que não mais se encontram entre nós.

Hoje, não foi diferente. Apesar de mais rápida, a visita ao cemitério foi regada de flores de todos os tipos. Primeiro, enfeitamos os túmulos dos parentes. Depois, como de costume, passamos por cada sepultura anônima, enferrujada e esquecida pelo tempo, perdida no meio da grama, e depositamos em cada uma delas uma pequena e singela flor. Sempre encarei esse hábito como um pequeno gesto de carinho com a memória alheia, de quem nunca vimos e não sabemos quem foi. Mas, como costume é costume, e desse não abro mão, simplesmente o faço sem muito auxílio da razão. Outro costume, esse sim uma sensibilidade de historiador, é o de ficar contemplando as artes tumulares e lendo epitáfios. A cada ano, uma nova descoberta. Uma poesia aqui, um versículo bíblico ali…

Algumas sepulturas só conseguem ser contempladas de cabeça erguida. Túmulos arranha-céus, imponentes e pretensamente feitos para a eternidade; outros, por sua vez, só podem ser observados olhando para o chão. Depende do status do cidadão. Afinal, até as necrópoles possuem símbolos de distinção. Hoje, um detalhe me chamou especial atenção: um fragmento de túmulo, uma foto caída ao chão, colada num frio pedaço de mármore. Um suspiro final da memória de um homem. De um homem negro, trajado de terno e chapéu, falecido cem anos atrás (talvez), cujo nome não mais se conhece. Que nome era o seu? Onde nasceu? Que trajetória percorreu? Por que morreu?

A vida é assim: não sabemos por que nascemos, quando partiremos e nem para onde iremos. Desconhecemos até mesmo os destinos e usos que farão de nossas memórias. Seremos lembrados ou esquecidos? Condenados ou exaltados?

O defunto-autor Brás Cubas, narrador-personagem do clássico livro de Machado de Assis (1839-1908), “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, diz que “cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.” A única certeza que temos é de que a vida só vale a pena quando elegemos o amor como o grande guia dos lugares por onde passamos e de tudo o que fazemos e realizamos. Por isso, depositei essa flor ao lado desse pequeno e pouco notado resquício de tempos pretéritos… Uma homenagem às memórias de indivíduos que, pelos mais diversos motivos, não são mais consagradas ou celebradas no tempo presente.

Independente da fé e da religião, celebremos nesse dia especial a memória de todos os que pela experiência terrena passaram e agora habitam, quem sabe, o campo imponderável do transcendente.

Simão Pereira, 02 de novembro de 2017.


Sérgio Augusto Vicente é bacharel, licenciado, mestre e doutorando em História pela UFJF. Dedica-se ao estudo da história social da cultura no Brasil, abrangendo temas como trajetórias individuais e de grupos, sociabilidades, associativismo, história intelectual, história social da literatura, acervos documental e bibliográfico, patrimônio cultural, memória e educação. Professor de História e historiador. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG).




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Um comentário

  1. Regina da Cruz Alvarenga

    A respeito do texto “No cemitério uma flor: sobre lembranças e esquecimentos”.
    Tocou-me a reverência aos que se ausentaram. Me fez meditar. Parece-me que o passado é rico de presenças e de presente. Os filmes, por exemplo, que trazem o presente de então para o dia de hoje nos preenchem de identidade, significado, encanto. Da leitura do texto acima, ficam: a visão de um historiador, o coração de um ser humano, riqueza de sentimentos que ultrapassam o começo, meio e fim da história das vidas e relacionamentos humanos. É transcendência. É alma. É viver em convívio com uma história humanizada. É dar conta do sofrimento existencial humano, pela mãos de hoje seguras nas mãos de ontem. Um físico, amigo meu, me falou de uma teoria possível, de que a vida seja como um filme passando. Todos as fotos já estão lá: passado, presente, futuro. A dor existencial é comum a todos nós. Mas, gosto também de pensar na essência, no imanente, na constituição última do mundo manifesto. Uma essência única, viva, sem início e fim, porque eterna.

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