2020: a soma de todos os medos? ou um manifesto pela vida?

Nas eleições presidenciais de 2002, duas personagens antagônicas participaram ativamente da companha peessedebista de José Serra: Regina Duarte, a “namoradinha do Brasil”, e Beatriz Segall, a eterna vilã “Odete Roitman”. Tanto uma como a outra declararam, então, ter um sentimento bem específico a respeito da possível eleição de Lula: medo. Isso mesmo: numa ponta do leque dos afetos novelísticos brasileiros, a frágil “namoradinha”; na outra, oposta, a terrível megera, mulher de negócios, empresária rica e poderosa. Ambas se sentindo amedrontadas diante da suposta ameaça comunista personificada no ex-operário.

Dezoito anos se passaram desde as eleições de 2002, nas quais, por fim, Lula foi eleito – para a posterior alegria de muitos banqueiros, quem diria. O mundo hoje enfrenta a pior pandemia em mais de um século. Beatriz Segall já faleceu, mas, na terra onde Vale Tudo, Odete Roitman está vivíssima – “5 ou 7 mil pessoas vão morrer? Sim. Mas a economia não pode parar só por isso”; “Funcionários públicos são parasitas”; “Indígenas são preguiçosos”; “50 mil pessoas já morreram? E daí? Eu não sou coveiro”; “Não existe racismo no Brasil”… Regina Duarte ainda está entre nós, mas não é mais a “namoradinha”; se casou e se divorciou. Também foi a-traída pelo grande surfista das ondas do medo que ela própria, Regina, ajudou a formar; agora está sem carinho (fez por merecer a antipatia de muita gente), sair já não pode (inclusive porque é idosa, grupo de risco para a COVID-19), já não pode cuspir (no prato em que sequer comeu como talvez desejasse)… a noite esfriou, o dia não veio… E agora, Regina?

Estamos em 2020 e o medo chegou à maioridade, tomou conta de tudo. E agora, José?

Ambidestria

A neurociência ensina: o medo é um necessário regulador de comportamento. Ele é parte importante do conjunto de estímulos que ativam uma série de reações físico-químicas que, por sua vez, afetando o funcionamento do nosso cérebro, ajudaram a garantir a sobrevivência da espécie humana desde a pré-história. O medo foi essencial para a nossa continuidade – ainda quando precisávamos intuir e repelir potenciais ameaças – e é fundamental para a autopreservação de cada indivíduo até agora – num tempo em que tantos de nós evitamos falar em política, por exemplo, com o único motorista de aplicativo que aceitou nosso chamado no meio de uma madrugada chuvosa.

Sendo assim tão onipresente entre nós, humanos, não é exagero supor que o medo não reconheça distinções político-ideológicas e aflija, mais ou menos igualmente, tanto quem se identifica com um pensamento político mais à direita (os reacionários e os conservadores, entre os quais incluo arbitrariamente os liberais) quanto mais à esquerda (os progressistas). E decerto o medo também aflige o pessoal do “Centrão”, mas eles merecem um estudo à parte; afinal, são criaturas que relativizam a afirmação aristotélica: nem sempre “a virtude está no meio termo”.

Por isso voltemos aos pólos – mas deixando de fora os extremos, terreno fértil para os comportamentos doentios, que não nos interessam aqui. À direita e à esquerda, o medo desde sempre atinge a todos; é ambidestro. Isso não quer dizer, é claro, que ele seja o mesmo nos dois casos. Não. É possível ver diferenças claras entre o mais cego instinto de sobrevivência e o legítimo desejo deliberado de evitação da morte.

A necessidade de segurança alimentar explica, em certa medida, o nomadismo e o sedentarismo. A busca por abrigo ante às adversidades climáticas e contra predadores justifica nossa ida para as cavernas e o posterior desenvolvimento constante de tecnologias para a construção de “cavernas” cada vez mais confortáveis. A fuga da escassez de comida e da vulnerabilidade diante de ameaças externas parece ter deixado em nós, homens dos séculos XX e XXI, a herança do desejo de acúmulo de alimento e de teto (algum domínio espacial extracorpóreo, concreto e/ou abstrato, seja ele um apartamento conjugado, uma casinha de veraneio ou um latifúndio improdutivo). Tudo isso se liga, mesmo se de forma difusa, ao instinto de sobrevivência e à sua majoração patológica, e certamente está também na gênese do pensamento (ou do inconsciente, talvez) dito “de direita”. Nada o resume melhor do que a compulsão pelo controle ostensivo de bens – materiais e/ou simbólicos.

Essa é uma hipótese plausível para explicar, por exemplo, a aversão da típica classe média brasileira ao acesso de recém-remediados econômicos aos aeroportos do país. Aquela fatia da população – viúva da colonização e alinhada à direita com a alta burguesia, fato inegável desde as eleições presidenciais de 2014, pelo menos – entendia os terminais aeroviários como território seu (já que os verdadeiros milionários não costumam andar por ali); a presença de ex-ou-quase-ex-pobres naqueles corredores era, na cabeça da classe média, uma invasão. Por analogia, políticas públicas de garantia mínima de subsistência (tais quais o Bolsa Família ou o Fome Zero) ou de compensação por prejuízos históricos (as diversas modalidades de cotas para as minorias sociais) são até hoje apontadas como ameaças à mesa ou aos espaços e bens materiais e/ou simbólicos acumulados pelos autoaclamados únicos meritosos naturais: os cidadãos da classe média. Contrariar essa crença é atacá-los, e, quando eles se sentem acuados, são capazes de qualquer coisa para terem um exército para chamar de seu – mesmo que isso os leve a ter de trocar New York por Nova Iguaçu.

Na outra ponta da imensa corda do medo que nos enlaça a todos, estão aqueles que, ao longo dos séculos, desenvolveram o legítimo desejo deliberado de evitação da morte: os progressistas. Entenda-se: não se trata de preocupar-se apenas nem principalmente com evitar a própria morte, mas também a de outros seres humanos, ou outros animais quaisquer… ou até de um bioma inteiro. Sim, porque evitar a devastação do meio ambiente (a de um ou mais biomas, portanto) é uma preocupação progressista, coisa que – 2020 tem nos mostrado – passa ao largo da atenção de quem só quer aumentar os limites do próprio latifúndio, seja ele dedicado ao plantio de commodities ou ao pasto para o gado – atenção à mensagem subliminar, por favor.

Não que o pensamento entendido como progressista tenha algo intrínseco de “bom samaritano”; não é isso. Na verdade, acontece apenas que o princípio mais geral de uma concepção progressista do mundo é a noção de que a promoção do bem estar físico e emocional comum, para todos e todas, é um projeto possível e, mais, necessário no afã de chegarmos à paz para cada indivíduo. Posto de outra forma, no ideário dito de esquerda, a fim de que cada um alcance a sua própria felicidade, é preciso buscar o contínuo progresso na distribuição das riquezas materiais e simbólicas que a humanidade, como um todo, produz. Entre essas tais riquezas contam-se, é claro, além dos bens naturais (tais quais a terra e a água), os culturais (p.e., o mais irrestrito respeito à noção dos direitos humanos, e a sua mais ampla difusão).

Não é difícil entender o choque político entre direita e esquerda. De um lado, está um pensamento que concentra esforços no sentido de acumular coisas (concretas e/ou abstratas), por estar medularmente preocupado com a garantia da sobrevivência do indivíduo e dos grupos com os quais esse mesmo indivíduo se identifique. Do outro lado, um ideário que, visando afastar ao máximo a morte (física ou simbólica) de tudo que é vivo, defende a distribuição equânime (não igualitária, é importante destacar!) daquilo que nós, enquanto espécie animal racional, herdamos, construímos e construiremos. Não é difícil inferir, portanto, porque um grupo se sente ameaçado pelo outro: a distribuição é iconicamente antagônica do acúmulo; a urgência de juntar e guardar o máximo para Si não reconhece os direitos nem as necessidades básicas do Outro.

O resultado dessa tensão milenar é o que vivemos neste momento: o estado da arte dos meios e das tecnologias de comunicação permite que muito mais gente seja capaz de vigiar a vida e as posses alheias; em paralelo, quase qualquer um no planeta pode ser vigiado (e punido, cf. Foucault) a qualquer tempo. Ao mesmo tempo em que pouca coisa pode ser guardada em segredo absoluto, cresce a indisposição para conhecer a fundo qualquer coisa diferente daquilo que já se conhece. O avanço das tecnologias de comunicação e informação nos lançou a todos, conservadores e progressistas, num tipo de panóptico radical, microfísico. Vem daí o medo.

O medo que tanta gente sente dos comunistas (de fato ou fake), dos presumidos pedófilos, dos maconheiros (categoria errática em que quase todo cabeludo boa praça periga ser enquadrado), dos homossexuais (assumidos), das travestis e dos transexuais, dos pretos (favelados ou não), dos deficientes, dos indígenas, dos adeptos de religiões de matriz africana… E também o medo que tantas outras pessoas têm de maridos e pais “homens-de-bem”, de patrões engomadinhos e suas canetas BIC, do fazendeiro e suas aves-bala, do grileiro com suas motosserras e fogueiras, do homem hétero marombado e com a cabeça raspada que anda sempre em grupo, dos religiosos de terno e com a bíblia debaixo do braço… Cada um desses seres pode assumir, hoje em dia, feições mais ou menos assustadoras, a depender de quem olha e das circunstâncias do olhar.

Hoje, assistimos ao pavor da mãe preta do policial militar quase branco que teme cair nas mãos de algum traficante quase preto. E é ainda por pavor instintivo que esse policial tantas vezes vai atirar primeiro e olhar depois, depois de já ter matado, por acidente, alguma criança inocente bem pretinha, ou alguma jovem engenheira meio loura que voltava da balada em seu carro que, para infelicidade de todos, era mais ou menos parecido com o de algum criminoso procurado justamente; ou não. A mãe branca da jovem talvez nem soubesse, mas decerto também tinha medo de que um dia algo assim acontecesse com algum conhecido seu; nem nas áreas nobres das grandes cidades se está a salvo.

2020 efetuou a soma de todos os medos e coroou-se com o desespero absoluto dos pais, mães, filhos e filhas de profissionais de saúde de todas as cores e orientações sexuais e credos religiosos e perfis socioeconômicos que, por obrigação profissional ou por amor, continuaram enfrentando os perigos cotidianos da vida e se mantiveram presentes e impávidos, cuidando de seus pacientes, fossem eles quem fossem, independentemente de crenças e gostos. Deve ter sido aterrorizante para esses profissionais ter que aprender a sobreviver e a conviver tão, tão proximamente com tanta, tanta morte.

O cruzamento do surreal com a distopia pariu o noticiário deste ano: criança caindo de edifício no Nordeste; adolescente assassinada acidentalmente pela amiga no Sul; médica plantonista linchada por boêmios canalhas no Sudeste; pessoas em situação de rua sem ter a quem pedir comida nas ruas das grandes cidades; idosos confinados com seus agressores por toda parte; o Cerrado, o Pantanal e a Amazônia em chamas; quase duzentos mil mortos, o país refém de uma quadrilha de psicopatas sádicos, e 40% da população sofrendo de Síndrome de Estocolmo.

2020 é uma experiência coletiva de terror. Resta sairmos dela mais fortes e mais sábios.

Aos vencedores, razão

Porque o mais cego instinto de sobrevivência e o legítimo desejo deliberado de evitação da morte são os dois lados da mesma moeda: o apego à vida! Conversemos!

Porque morrer não parece ser um gesto atraente, mas matar não pode ser a atitude mais sedutora do universo!

Porque, sem misticismo piegas, comer alimenta o corpo, mas ajudar a saciar a fome de alguém alimenta o espírito!

Porque ninguém são goza vendo Malabaristas do sinal vermelho, mulheres espancadas, gays perseguidos, homens pretos mortos a socos e pontapés, indígenas e florestas dizimados!

Porque a liberdade e a dignidade são valores que não têm preço, nem podem ter endereço!

Porque, se antes de 2020, a vida não nos ensinou a respeitá-la, não é possível que, junto dele, a morte não nos ensine!

A “namoradinha do Brasil” e “Odete Roitman” são personagens ficcionais. Nós somos seres humanos reais e capazes de mudar nossa vida e nossa realidade.

Que venha 2021 e, com ele, uma vida de verdade, sadia e justa para todes!

Assim façamos ser.


Luciano Nascimento é mangueirense, filho, marido, pai, professor, flamenguista, psicopedagogo… mais ou menos nessa ordem. É, também, idealizador do projeto Dê Efiência.(www.deeficiencia.com.br) E-mail: prof.lcnascimento@gmail.com



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