Herança – Capítulo 9: O que vem depois do começo

O Sol se punha entre duas árvores de copa larga. Alguns espectadores colocavam a mão aberta sobre a testa para ver melhor o jogo, que estava muito disputado.

Rubens passou por ali sem muitas pretensões de conseguir encontrar o garoto. Teve grande sorte, pois ele, fominha de bola como era, estava no time que havia ganhado todas até aquele momento. O médico vinha pensando no como seria bom ter um rapaz jovem entre ele e Alciléia. O que mais o animava era poder realizar grandes fantasias com a anuência da amante – uma vez que a esposa, nesse quesito, era extremamente conservadora. E o primeiro desafio era aproximar os dois.

Como faria isso, ele não sabia. Tinha que arranjar um jeito de fazê-los se encontrar antes mesmo do baile, e teria pouquíssimo tempo para arranjar isso. Sorriu entredentes para si mesmo, para seu íntimo, imaginando a sorte que o filho da Noêmia teria de, já tão novo, poder experimentar uma beldade como a sua garota.

A poeira subia no campo, com um zagueiro mandando a bola para o alto, evitando assim a aproximação indesejada do atacante do time adversário. Havia uma nuvem de poeira no ar. O clima estava abafado, e Rubens suava entre as axilas vestido numa blusa desconfortável, pensando em quanto fora esperto ao deixar o blazer no carro. O suor escorria por sua testa e por seu pescoço, deixando entrever a poeira do campo que se acumulava aos poucos no seu corpo febril de desejo ao avistar o garoto sem camisa, desfilando sua masculinidade toda naquele início de noite de verão. Como o campo não possuía refletores, o próprio tempo se incumbia de fechar as portas do estabelecimento a céu aberto. Um burburinho se formou no centro do campo. O juiz havia apitado o final da partida, decretando a vitória do grupo de Augusto, que foi carregado por seus convivas por ter feito 9 dos 12 tentos do time durante as disputas com os outros que iam entrando.

Passados alguns minutos, após sair daquele movimento todo, o garoto, com as sobrancelhas franzidas e uma enorme curiosidade na cabeça, avistou de longe o Sr. Rubens. Seguiu em sua direção, já que o homem se mantinha com o olhar fixo nele.

– Olá, senhor Rubens.

– Olá, rapaz. Por favor, sem cerimônias. Me chame só de Rubens.

Os dois se cumprimentaram. Rubens sentiu entre seus dedos aquela mão suada e áspera, suja de terra. O menino estava um pouco ofegante ainda, com a camiseta no ombro, pés descalços, carregando suas chinelas debaixo do braço. Trocaram algumas palavras sem muito interesse até que, num momento da prosa, Rubens sentiu liberdade de desferir o golpe: “Tenho uma amiga muito íntima que gostaria de ir num baile de Carnaval à fantasia. Como eu irei com minha esposa, e essa amiga não quer ir sozinha, pensei que você poderia acompanhá-la. O que acha?”. Augusto limpou o suor do rosto com a camiseta, suspirou profundamente e quis saber o dia da festa. “Será no próximo sábado.” Imaginando que o garoto diria que não tinha dinheiro para roupa, ele se antecipou: “Não se preocupe com a roupa. Eu vou encomendá-la pra você e pra minha amiga. Vocês vão como um casal. Por isso preciso que se conheçam antes, talvez na quinta de noite, depois de amanhã.”; “Neste caso, então, Sr. Rubens, acho que vou aceitar.” Os dois sorriram um para o outro, mostrando uma intimidade inexistente.

Apesar da pouca idade, Augusto sentia, naquele lance repentino e naquela proposta meio estranha, uma oportunidade de sair do marasmo de vida em que se encontrava, querendo mesmo aproveitar alguns instantes às custas alheias; nada melhor que um cara rico pra isso, pensava ele, vindo de brinde uma mulher que ele não conhecia ainda, mas que tinha a certeza de que não seria pouca coisa. Rubens puxou assunto sobre o futebol, Augusto retribuiu com a animação esperada, pois queria se vangloriar dos feitos realizados naquela tarde. Ficaram alguns minutos conversando. O médico passou o endereço de onde Alciléia morava, deu dinheiro para o táxi do garoto e combinaram às seis horas da noite. Ao final da conversa, antes de irem para o carro, Rubens o pegou pelo pulso e o olhou fixamente. “Augusto, gostaria que isso ficasse entre nós, somente nós, ok?”. O rapaz, a princípio incomodado com a atitude do novo amigo, logo depois percebeu sua preocupação, relaxando os músculos da face e tranquilizando o companheiro.

No mesmo instante, uma grossa gota caiu no polegar que segurava o pulso de Augusto, escorrendo pelo seu braço. Uma nuvem cinzenta, promessa de chuva à noite inteira nas redondezas, virava realidade.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. www.darlanlula.com.br


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