[Arredores] O ESPONTÂNEO HABITUAL COTIDIANO, COM W.DEL GUIDUCCI

A literatura é, sem dúvidas, um dos ramos das artes com mais candidatos – e, talvez, um dos quais os artistas mais são questionados sobre poderem se utilizar desse título, uma vez que a escrita ultrapassa o âmbito artístico. O escritor, com frequência, é confrontado com sua arte: como dizer que a rotina, o hábito, não assassina o aspecto artístico do texto?

A crônica, um dos gêneros literários mais queridos do Brasil – até mesmo pela fama de ter nascido em solo nacional -, se consagrou enquanto a transformação do cotidiano em arte. Mas e quando se encurta a narrativa? E quando ela é colocada à prova com os deadlines? E quando o texto se torna apenas poucas frases?

Alguns escritores defendem a arte presente em todas essas condições – entre eles, o juizforano W.del Guiducci, que acaba de publicar seu segundo livro de minicontos, Suíte Cemitério, o qual traz textos tão curtos quanto dúbios ao extremo da possibilidade.

Essa semana, a Trama conversou com o autor, que é cronista e jornalista na Tribuna de Minas, músico da banda Martiataka, e professor ‘em formação’. Rola pra baixo pra conferir a entrevista!

W.Del Guiducci, autor de Curto & Osso e Suíte Cemitério,
desfruta de seu mais novo livro na Quarup Livraria.
Foto: Fernando Príamo

Trama: O Suíte Cemitério é o seu segundo livro e foi viabilizado através de crowdfunding. O projeto, inclusive, ultrapassou as metas necessárias para o custeio da obra. Como você percebe esse sucesso? Você o entende como uma resposta ao seu primeiro trabalho, ou ao trabalho que você já vem desenvolvendo na Tribuna? Como é, isso?

Wendell: O meu primeiro livro saiu em 2016, o Curto & Osso. Ele tem o mesmo formato desse [Suíte Cemitério], são 99 contos também, e também nasceu em paralelo à minha pesquisa – então, de mestrado; agora, de doutorado. Os dois livros são compilações de textos que eu já havia publicado: o ‘Curto & Osso’, eu publiquei em um blog que eu fui escrevendo paralelamente à minha pesquisa, e que tem lá quase duzentos minicontos – e, dali eu selecionei 99 para publicar. Então, as histórias já eram conhecidas de algumas pessoas, porque eu divulgava [o blog] nas redes sociais. Já o ‘Suíte Cemitério’, eu passei a publicar os textos já direto no Instagram; eu escrevia à mão e fotografava para um perfil que eu criei especificamente para isso, o Instantextos. Ao lado da minha escrita na Tribuna como cronista, que vem de 2010 para cá, eu também passei a publicar minicontos a partir de 2013 no blog – nisso, a minha escrita já era conhecida de um pequeno grupo de pessoas que me acompanhava pelas redes sociais (amigos, conhecidos, ou quem vinha por compartilhamento).

O Curto & Osso, eu aprovei na Lei Murilo Mendes; o Suíte Cemitério, eu não consegui por conta de um documento que ficou faltando na submissão. E aí, eu fiquei na cabeça que eu já estava com um outro livro sendo escrito, e com dois grupos de crônicas pré-selecionados da minha produção da Tribuna para sair, também; eu não podia segurar o Suíte Cemitério por mais tempo, e resolvi fazer o crowdfunding. Aí, eu fiquei com medo. Porque, putz, e se eu não conseguisse o financiamento para fazer os cem exemplares?

Então, eu fiz um cálculo mais ou menos de quanto que ficava – porque o livro é caro, é de capa dura, tem esse formato diferente, quadrado, e é impresso num papel bacana; e eu não queria abrir mão disso, porque o Curto & Osso saiu nesse formato, também, e a ideia é que seja uma trilogia – e fiz o crowdfunding. E, assim, eu me sinto muito satisfeito e feliz, porque eu bati a meta em coisa de dez dias, e acabou que ela foi superada, e eu consegui fazer, com a ajuda da Editora Cachalote – que conseguiu um preço melhor do que o que eu tinha conseguido -, uma tiragem de duzentos livros. Desses duzentos, cento e cinquenta já foram vendidos; eu ainda tenho alguns poucos exemplares comigo, e a editora também tem alguns. Então, eu considero que foi uma iniciativa de sucesso. A gente vive em um país que lê tão pouco, e que talvez esteja lendo mais, mas de uma maneira diferente, em suportes digitais; e esse aqui é um livro de papel. Eu esperava que a experiência de leitura fosse diferente do que era no Instantextos; acho que é diferente, a sua atenção, quando você está passando o feed e aí você encontra um texto literário, da que você tem quando você para para pegar um livro, com a expectativa de consumir literatura. Então, por isso, a publicação desse livro (foram 500 exemplares do Curto & Osso, e já não têm mais nenhum), eu sinto que foi uma iniciativa de sucesso e eu fico muito satisfeito. Vem dando um pouquinho de angústia, também, com os livros acabando em tão pouco tempo… mas, também já estou escrevendo outro, e bora pra frente (risos).

T: Você comentou dessa angústia dos livros estarem acabando; como funciona, com a editora, para uma possível reimpressão?

W: Eu não conversei com o Otávio, que é o editor do livro, sobre essa possibilidade. Acho que, como a editora ainda tem um volume legal de livros lá, tem que esperar para ver se, no momento em que acabarem os volumes, se vai existir interesse numa segunda impressão, ou se a gente já parte para o próximo [livro], que já está em processo de escrita.

T: O Curto & Osso foi publicado pela Murilo Mendes, e na própria página do crowdfunding do Suíte Cemitério, você coloca que a ideia era publicar o livro de forma independente; ainda assim, você terminou por publicá-lo com uma editora. Como se deu a sua relação com a editora? Foi uma procura da sua parte, ou da parte deles? E como foi fechar essa decisão de publicar com a editora?

W: Quando eu decidi fazer o livro de forma independente, sem a Lei, pelo crowdfunding, eu pensei que existia a parte burocrática, de registro junto à Biblioteca Nacional, com a qual eu não queria lidar; eu sou fraco para esses assuntos burocráticos (risos). Então eu já tinha pra mim que eu ia procurar alguém [para resolver essa parte]. E aí, conversando com alguns amigos em comum, me indicaram o Otávio, da Macondo e da Cachalote, porque talvez ele tivesse interesse em publicar; porque o livro já estava pago, já estava com a diagramação pronta, feita pelo Ruy Alhadas – que foi quem diagramou o Curto & Osso, já estava com as ilustrações do Guilherme Melich encaminhadas… então, o produto já estava pronto. E procurar a editora já com tudo isso resolvido, sem precisar resolver capa, nem diagramação, nem nada… o Otávio foi super solícito; ele pediu para ler os textos, e achou que estava dentro do escopo do que ele trabalha na Cachalote [desde o conteúdo até a parte visual]. Então, foi um casamento muito feliz. Eu procurei a editora, fui super bem recebido pelo Otávio – que é um Lorde, assim, um cara que tratou todas as etapas dentro do processo de publicação com o maior carinho, e que eu espero fazer muito mais coisas junto.

T: Você comentou da diagramação, e na sua primeira resposta você mencionou o formato bem específico do livro. Como você chegou nisso? Porque, em casos assim, o formato dialoga muito com o conteúdo e o conceito do livro. Como foi conceber esse projeto do livro enquanto um objeto completo, e não apenas como um suporte para os seus escritos?

W: Ele é bem um livro-objeto, mesmo, né? É um livro que para em pé (risos). E é um livro bonito, que você pode deixar ele exposto quase que como um objeto de decoração. E a leitura, ela dá a sugestão de ser uma leitura rápida, o que é bom para essa funcionalidade. Mas eu não só escrevo minicontos; eu pesquiso minicontos desde 2013, fiz o meu mestrado e o meu doutorado sobre eles. Então, eu tive acesso a uma quantidade grande [de livros], eu tenho uma pequena biblioteca composta só por livros de minicontos que eu fui comprando ao longo dessas pesquisas. E, dentre eles, dois livros me chamaram muito a atenção por conta do formato: o “Cem Melhores Contos do Século”, organizado pelo Marcelino Freire, que traz cem minicontos de autores brasileiros e que tem um formato que é bem parecido com o do meu; e o outro é o “Passaporte”, do Fernando Bonassi – que foi o primeiro livro de minicontos que eu li por sugestão do professor Fernando Fiorese, que foi quem me apresentou esse universo das micronarrativas -, que é muito legal, porque tem um formato que remete, mesmo, a um passaporte, a partir de todo aquele trabalho de esmero que a Cosac Naify sempre teve com os seus livros. E tem ‘Os Anões’, também, da Verônica Stigger, que também é um livro objeto… e então, eu pensei que eram boas referências para o que eu queria fazer. Os meus contos são muito curtinhos, né? Cabem numa página só, e em uma página desse tamanho [quadrado e menor que o comum]. Então foi um caminho natural, buscar um formato que fosse menor, e ter esse cuidado para que fosse um acabamento mais caprichado – porque, também, a gente precisa lutar contra a noção de que escrever curto é escrever textos de menor valor; porque tem um labor ali, um trabalho todo que fica submerso para que aquela pontinha do iceberg, que é a micronarrativa, apareça. E eu acho que fazer o trabalho gráfico com esse capricho maior, transformar o livro em um livro objeto, é também uma maneira de demonstrar, fisicamente, que há esse cuidado todo com os escritos.

T: Como é a sua relação com a escrita desses textos mais curtos? De onde ela vem? E qual é a relação dessa sua escrita com o jornalismo?

W: Você matou a charada (risos). Quando eu fui começar o meu mestrado, eu estava em dúvida sobre o que eu ia estudar. Na época, eu estava pensando em trabalhar com crônica; e eu fui orientando do Fiorese, que já tinha sido meu orientador na graduação – eu estava saindo da Comunicação para ir para a Letras, e estava nessa de ficar com a crônica por ser esse gênero meio híbrido entre o jornalismo e a literatura, para ajudar essa transição a ser mais suave. E aí, eu falei com ele que o meu interesse era em um texto mais sintético, mais telegráfico, e ele me apresentou o miniconto; me mostrou o Fernando Bonassi, e não me falou que ele mesmo era um escritor de minicontos de mão cheia (risos) – ele estava publicando um blog, não me falou, e eu fui descobrir depois, quando já estava pesquisando e caí no trabalho dele.

Na minha experiência com o texto jornalístico, que é esse texto mais objetivo, eu sempre trabalhei com a noção do limite de tempo e de espaço da página – eu fui criado no jornalismo impresso, né, embora a internet e o site da Tribuna tenham se desenvolvido em paralelo a esse trabalho; então, acho que foi um caminho natural, eu ter descoberto o miniconto, ainda que pelas mãos do professor Fiorese. Porque o meu interesse já era em um texto mais telegráfico. E eu sempre fui um leitor de contos. Sempre preferi contos a romances; inclusive, durante a minha pesquisa, eu fiquei uns bons anos sem ler um romance, porque quase todo o tempo de leitura que eu tinha era voltado para esses gêneros mais breves. E durante a pesquisa, eu fui tendo contato com outras textualidades brevíssimas, que não estão ligadas necessariamente à modernidade, e muito menos à época da internet, como os epigramas (lá de antes de Cristo), a fábula, a anedota, o haikai… e aí, quando a gente entra na modernidade, os poemas em prosa do Baudelaire; depois, o Poema-Minuto do Oswald [de Andrade]; e os romances seriados, de folhetim… e reencontrei a própria crônica, enfim. É uma relação que passa muito, sim, pelo jornalismo.

T:  E o que te fez pular do jornalismo para a literatura?

W: Esse pulo, na verdade, foi mais sobre publicação – porque escrever, eu escrevo já há bastante tempo. Eu sempre escrevi ficção. Quando eu era bem moleque, com sete para oitos anos de idade, eu fazia quadrinhos: desenhava os personagens e escrevia as histórias; depois, eu passei a escrever roteiro de filme para fazer com os meus amigos – o que a gente nunca fez porque não tinha acesso a câmeras, isso no final dos anos 80, início dos 90; depois, passei a escrever contos, e aí escrevi e engavetei.

Quando eu começo a escrever crônica na Tribuna, isso em 2010, eu passei a ganhar uma disciplina que eu acho que é muito necessária para o escritor. Eu tinha que publicar, toda semana (na época, às quartas, se não me engano), as crônicas de esporte – só que eu nunca falava só de esporte; eu sempre usava o esporte como um gancho para ter ali um segundo texto subjacente ao texto principal. Enfim, e isso me deu ali uma disciplina. Então, quando eu começo, em 2013, a pesquisar e a publicar os minicontos através do blog, foi muito por essa experiência de ter desenvolvido essa disciplina. Porque se você fica esperando escrever um texto genial para poder publicar, você não vai publicar nunca; até porque, se você tiver um mínimo de autocrítica, você não vai descobrir texto genial nenhum dentre os que você faz. Então, eu optei por fazer quantidade. Eu assumi um compromisso com os minicontos que era o mesmo compromisso que eu tinha com as crônicas no jornal, que era o de que eu tinha que publicar todo dia ‘tal’ da semana.

Hoje, depois de ter saído do esporte e vir para o Caderno Dois – o que deixou a minha possibilidade de temática muito mais ampla, já que eu não precisava mais estar preso na desculpa do esporte para poder publicar, isso se mantém, essa disciplina. E acho que é ela, que eu conquistei lá na crônica, foi o que permitiu que eu saísse desse híbrido de literatura e jornalismo para poder ir só para a literatura – se é que o miniconto é isso; o miniconto, também, é difícil de rotular. Tem gente que pega meu livro e diz que adorou os meus poemas (risos). Eu é que não vou desmentir a pessoa, deixa ela achar o que está achando, está ótimo. Mas esse salto, eu acho que também foi feito dentro das páginas de jornal, quando eu passo a escrever crônica e, depois, começo a escrever os meus minicontos.

E tem as letras de música, né? Também tem isso. Eu publiquei, antes das crônicas e de tudo, as letras de música. Quando eu fundo o Martiataka e a gente lança a primeira demo, em 2002 ou 2003, é o meu primeiro escrito publicado, aquela letra de música.

T: E você sente que as letras de música eram mais fáceis de publicar do que os outros escritos literários – considerando desde a recepção até o fato de você se sentir mais ou menos seguro para publicar?

W: Eu não sei te responder ao certo, isso. Não acho que foi mais fácil ou mais difícil. Mas tem uma coisa engraçada: esse regime do deadline, ele chegou na música quando a gente fez o último disco do Martiataka; e é engraçado, isso, porque era sempre um processo de escrever a letra primeiro e depois fazer a música, ou fazer os dois juntos. Mas o Fedora, especificamente, que a gente lançou no final de 2019, quando a gente foi fazer os arranjos finais, eu tinha todas as melodias e nenhuma letra. Então, em muitos casos, eu sentei em casa às oito da noite e escrevi a letra para um ensaio que era às dez, bem em cima do deadline – e esse é um intercâmbio de procedimentos que eu não sei te explicar por que aconteceu.

T: Você comenta, tanto nessa resposta quanto na anterior, sobre a disciplina da escrita. Como você percebe a importância dessa disciplina dentro da ideia do exercício de escrever, do movimento de transformar a ‘pessoa’ em ‘autor’?

W: Eu acho que ela é mais do que importante; ela é essencial. Se você for perguntar para escritores consagrados o que eles têm a dizer sobre disciplina, eu acho que eles vão falar isso, também. Eu penso que, pr’um cara escrever um romance, por exemplo (eu nunca escrevi um romance, e nem acho que escreverei), ele precisa ter uma disciplina muito grande para conseguir produzir texto; por mais que, depois, ele corte muito e faça esse trabalho todo de dilapidar, ele precisa, primeiro, escrever.

E a possibilidade de publicação que a internet apresenta, também, é muito importante [nesse processo]. No meu caso, a disciplina nasce comigo dentro da crônica; e tem dia que você simplesmente não sabe o que escrever. Todo cronista, literalmente todo cronista, tem pelo menos uma crônica sobre não saber o que escrever, sobre a folha em branco; pode saber que tem! (risos) Se pegar o Rubem Braga, ele tem. E a gente tá aqui brincando sobre isso, mas isso é importante. Porque quando você não tem nada para escrever, se você sentar para escrever, de repente pode sair uma coisa boa; e, às vezes, você está com uma ideia que está martelando na cabeça há semanas, e tem certeza que vai sair um senhor texto, se prepara para escrever, e é o maior tiro n’água, sabe? Não toca ninguém. Porque a crônica tem dessas coisas; ela tem uma funcionalidade de tornar o ambiente do jornal mais leve – e, às vezes, você não consegue alcançar isso com uma coisa que está muito bem trabalhada na cabeça, porque não flui. E, às vezes, você consegue alcançar isso com a “crônica da folha em branco”, consegue tocar as pessoas.

A minha disciplina foi através da publicação: o meu compromisso não era o de escrever, mas o de publicar. Eu trabalho em jornal há vinte anos, com esse compromisso de publicar – porque é uma questão de me alimentar; tem um haikai do Millôr [Fernandes] que ele diz “meu dinheiro/vem todo/do meu tinteiro”. Eu vivo da escrita. Há vinte anos, eu faço isso para viver. Então, essa disciplina se deu através da publicação, e não da prática; publicar, para mim, vem antes de escrever, e eu escrevo porque preciso publicar. E aí quando eu faço isso na crônica, eu crio essa disciplina que me permite fazer isso através de um blog. Eu não escrevia e dizia “daqui a quatro dias, vou publicar”; eu sentava, escrevia e publicava. Tem um senso de urgência, também, que a gente acaba sendo contaminado por conta desses tempos hipervelozes, e das possibilidades de resposta e feedback que a internet proporciona – que é diferente de quando você escreve e engaveta (o que eu já fiz muito, tenho até que revisitar esses escritos para ver se tem algo que presta). Essa coisa de escrever e guardar pode funcionar como disciplina para algumas pessoas, a ideia de “vou escrever todos os dias no horário tal, guardar e depois leio tudo”; mas, para mim, o jeito foi escrever e publicar, escrever e publicar, escrever e publicar… dar a cara pra bater.

Eu lembro que um amigo meu, o Dudu Monsanto, jornalista também, numa conversa sobre crônica, me disse assim: “cara, mas mesmo os grandes cronistas já fizeram muito café ralo”, de não escrever nada que preste; e quando você está nesse regime, é assim mesmo. A própria Clarice Lispector tem uma frase ótima, de quando ela publica um livro que era um compilado de escritos engavetados e que se chamaria “Fundo de Gaveta” (o nome acabou sendo outro), e ela diz que gosta daquilo, também, que tem a forma do mal feito, daquilo que tenta um voo, mas que logo cai desajeitado no chão – e que é justamente por isso que ela pega esses textos e resolve publicar. Eu gosto muito desse pensamento, porque se você tem essa ideia de publicar não o que está perfeito e acabado, mas aquilo que foi possível publicar naquele momento, você se torna um pouco mais condescendente com a sua escrita e, ao mesmo tempo, fica mais confiante de saber que você pode publicar e que nem tudo precisa estar totalmente acabado.

E aí no meu caso, na hora de fazer essa seleção para publicar – eu fiz uma seleção das minhas crônicas de esporte na Tribuna, já até tem um volume preparado -, de 200 textos, eu acho que consegui salvar 50, e forçando a barra (risos). E acho que é isso. Essa disciplina, para se fazer autor, é essencial.

T: Nessa questão do hábito, muitos escritores falam da abordagem espontânea de um tema, e acusam o hábito de matar um pouco essa espontaneidade. Como você percebe o encaixe dessa espontaneidade dentro da rotina, do hábito, da disciplina?

W: Eu acho que a espontaneidade não depende de um susto ou de um insight; ela está dentro de você. Então quando você senta para escrever, mesmo que você vá escrever sobre aquela página em branco, durante o trabalho, a espontaneidade vai aparecer. Enquanto você estiver procurando palavras e expressões, é aí que ela se manifesta. Ela não tem que estar ligada, necessariamente, ao conteúdo; ela pode surgir da forma – e isso só acontece quando você está trabalhando.

Até ideias podem vir [disso]. Através do exercício da forma, a ideia se formar ali. É científico isso, inclusive: enquanto você está exercitando a escrita, você está exercitando pensamento. Você está ali tentando exprimir um pensamento, e isso é uma forma de exercitar. Então, isso [de o hábito matar a espontaneidade] não me preocupa.

T: Em algumas respostas anteriores, você comentou sobre essa possibilidade de publicar e de receber feedback, e também comentou sobre a possibilidade de a disciplina nascer do simples hábito de escrever, e como não publicar permite que o autor trabalhe e retrabalhe o texto. Você sente que a necessidade da internet de ser alimentada com essa velocidade faz com que autores matando essa fase de trabalhar o texto?

W: Esse risco existe, sim. Quando você trabalha com prazos, você muitas vezes vai com o texto mais rascunhado do que você gostaria. Um exemplo prático: eu escrevo as minhas crônicas, quase sempre, aos domingos, para publicar nas terças-feiras. Evito escrever nas segundas, pelo prazo apertado, e nos domingos à noite, pra evitar estar aborrecido com algum resultado do Flamengo na hora de escrever (risos). E eu criei esse hábito, e mantenho ele porque, chegando no Jornal na segunda feira, quando eu sentar para preparar a versão final do texto para enviar para o diagramador, dá tempo de dar mais uma olhada. E depois, eu prefiro nunca mais olhar. Eu não volto para ler de novo, porque se eu voltar, eu vou ver coisa que gostaria de mudar. Então, eu acho que esse regime de necessidade de publicação, que pode servir pra internet ou pro jornal, conserva o texto. Porque se você tiver mais tempo, você vai gastar mais tempo. E isso, de um lado, pode ser pouco produtivo pra você, porque da mesma maneira que você pode matar boas ideias que poderiam nascer se você trabalhasse mais o texto, você também pode matar boas ideias se você tiver mais tempo de burilar o texto, tirando coisas que seria muito legais de serem lidas. É uma faca de dois ‘legumes’, isso.

T: Pensando nisso aplicado ao miniconto, como você sente essa questão da voz artística aplicada no gênero, e como essa própria questão da disciplina afeta a voz artística?

W: Tem uma coisa interessante em relação ao miniconto e ao texto jornalístico que é a seguinte: o texto jornalístico não pode se dar ao luxo de ser dúbio ou ambíguo; o seu compromisso, primeiro, no texto jornalístico, é com a informação. Claro que vai ter gente capaz de passar a informação com um texto mais gostoso de ler, até poético; mas não é todo mundo. De toda forma, o compromisso é com a informação. O miniconto, por sua vez, o importante é talvez que ele tenha o mínimo de informação possível, a ponto de atrapalhar a possibilidade de colaboração do leitor. O miniconto não funciona sem um leitor preparado. Ele é um texto aberto a sentidos diversos, e acho que o fazer artístico se manifesta aí, nessa abertura de sentidos.

T: Você comentou, num dado momento, que você vive da escrita há vinte anos. E viver da escrita é o sonho de muita gente, principalmente quando a gente pensa no sentido literário. Qual é a sua percepção, enquanto alguém que vive da escrita, sobre essa própria vivência? Como é a sensação de viver da escrita?

W: Eu me sinto privilegiado – ainda que o sonho de todo escritor seja viver da literatura, o que não é o meu caso. Acho que foram poucos aqueles que viveram da literatura, quando a gente olha para o universo de escritores. Se você pegar os nossos primeiros autores brasileiros, no séc. XIX, que formataram o realismo no Brasil, eles não eram escritores de ofício; nem o nosso maior de todos. Eram advogados, ou trabalhavam para jornais… Viviam da escrita, mas a literatura não era o seu ofício principal. E nos dias de hoje, pensando os grandes autores, todos são ou professores, ou jornalistas, ou estão na televisão, ou estão fazendo cinema, ou teatro; não vivem de literatura. E eu me coloco, também, nesse bojo de afortunados que vivem da escrita. Vivo como jornalista, do que eu escrevo na Tribuna e em freelas, e posso publicar livros – cheguei nesse estágio de ter coragem de publicar livros, o que eu acho que é algo que eu vou fazer por muito tempo, ainda. Mas mesmo que o meu dinheiro venha do meu tinteiro, como diz o Millôr, e que infelizmente não seja do tinteiro que eu uso para a literatura, eu sou muito grato por poder viver de algo que eu gosto muito, que é escrever.

T: Você demarcou, de forma muito acertada, que a maioria dos autores não têm a escrita literária como ofício principal. Como você percebe essa questão da escrita literária ser um segundo ofício, pensando que o primeiro ofício trabalha no sentido de enriquecer essa escrita?

W: Tudo o que a gente vive colabora para a nossa escrita. A vivência que você tem, não só enquanto você está fazendo turismo pela Índia e pela Escandinávia, como você fez, por exemplo, não é só ela que vai alimentar a escritora. Essa entrevista aqui, que é o seu trabalho, e o seu trabalho como editora, por exemplo, é uma experiência que pode te enriquecer e que pode afluir para a sua escrita, de alguma maneira. A crônica tem muito disso, da escuta, de se alimentar do cotidiano para gerar o seu texto. Mas não acho que é só sobre estar atento ao cotidiano para pintar um quadro daquilo ali; as coisas que a gente faz, a maneira que a gente vive, e as próprias coisas que a gente escuta – enquanto jornalistas, a gente está sempre escutando muitas histórias -, isso aflui, também. Tudo o que você experimenta e retém um pouquinho que seja, uma hora vai servir para algo. Então é difícil separar. Você vai separar a editora da cronista? Vai separar a viajante da escritora? Acho que João Cabral também não separou o diplomata do escritor.

T: E por que publicar um livro demanda tanta coragem?

W: Porque você se expõe. Quando você pinta um quadro, ou escreve um romance ou uma crônica, você está expondo o seu trabalho ao olhar das pessoas. Então, você pode estar certa de que vai, sim, receber elogios, principalmente daquelas pessoas que te conhecem e que querem te ver feliz; mas que também está sujeita a críticas que, às vezes, serão pouco cuidadosas e destrutivas. Então, exige coragem expor o seu trabalho, qualquer que seja ele – até um pedreiro que vai subir uma parede. É um labor igual. Mas, para determinados ramos de atividades, você expõe em rede social, na internet, você precisa ter coragem, porque está sujeita a ser devastada, a ser xingada, tudo mais – especialmente nesses dias de hoje, em que a resposta está tão fácil. Eu, por exemplo, parei de ler os comentários às minhas crônicas na Tribuna, por exemplo; porque as pessoas escrevem coisas que não edificam em nada. Porque a crítica negativa, ela pode te edificar; mas chega muito xingamento.

Eu acho que a coragem está quando você assume uma nova identidade, a de ser “autor”. Então, você tem que estar preparado, também, para ser ridicularizado frente a isso. Tem que ter coragem pra isso. Sem sorte e sem coragem, não se toma nem um café na padaria da esquina (risos).

T: Você publicou o Suíte Cemitério pela Cachalote, e o Curto & Osso saiu pela FUNALFA. Com essa perspectiva da trilogia, existem planos de republicar o Curto & Osso pela editora?

W: Por agora, não; por agora, eu quero muito publicar esse próximo livro de minicontos. E depois que eu terminar a trilogia, eu penso se, amis no futuro, faria uma edição única compilando os três. Enfim, tem muita sobra, como eu comentei, do Curto & Osso, que eu publiquei quase 200 contos no blog, e só 99 foram para o livro; e sobras, essas, que talvez sejam dignas de publicação, de um ‘lado B’. O próprio Suíte, acho que foram 130 contos no Instantextos, e aí ficou essa rebarba aí para trás, que talvez seja interessante publicar. Mas acho cedo para pensar nisso; a ideia é focar nesse próximo e nos livros de crônica, que um já está mais ou menos preparado para sair (talvez saia até antes do terceiro livro de minicontos, vou tentar com a lei de incentivo). Mas, o Curto & Osso, acho cedo para pensar em republicação. Deixa ele amadurecer de páginas fechadas.

T: E quais são os planos daqui pra frente, para além do terceiro livro de minicontos e do livro de crônicas, e até pensando no próprio Martiataka e na Tribuna?

W: O meu trabalho nesse momento, com a literatura, permanece sendo escrever as crônicas toda semana, e preparar o sucessor do Suíte; além do livro de crônicas de esporte, que já está quase pronto e que eu quero ver o que fazer com ele nos próximos meses. E… com o Martiataka, eu gostaria muito de voltar a fazer show. A gente não faz show já há quase um ano; porque a gente só fez uma live durante a pandemia, em junho, e eu acho que, desde então, eu nunca mais nem vi os meninos da banda. E a gente nem chegou a divulgar o disco! A gente lançou o Fedora no final de 2019, aí vieram as festas, e quando a gente estava começando a fazer os shows, cheio de data marcada em março e abril, veio a pandemia, e agente não conseguiu fazer nada. Então, com eles, eu gostaria de retomar o Fedora quando tudo isso passar.

T: Qual pergunta você gostaria que eu tivesse feito e que eu não fiz? E qual a resposta para ela?

W: Eu acho que você perguntou tudo. Deixa eu pensar… (silêncio). Não. Você perguntou tudo. Você deve ter tido ótimos professores na faculdade (risos). Pelo menos um! Pelo menos um!

Suíte Cemitério pode ser adquirido diretamente no site da Editora Cachalote. Para acompanhar o trabalho do autor, siga Instantextos no Instagram.

Capa da entrevista: Fernando Príamo.


Sobre a Entrevistadora:

Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atualmente, é editora na Trama e escritora nas horas vagas.



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