“Não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer”

“Não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer”.

Gilberto Gil me traduz, me rabisca, me versa, expressa o medo em mim como se fosse ele mesmo minha própria voz. Talvez seja isso que defina um compositor: a habilidade de palavrear pessoas, amplificando
os sentimentos que guardamos em gavetas e potes dentro da cabeça ou do coração. Em minhas gavetas, eu guardo esse medo. Esse medo jocoso, que causa um risinho de canto de boca, bem debochado, que se borda nos rostos cosidos em ironia fina e pura.

“Qual seria a diferença, você há de perguntar. É que a morte já é depois que eu deixar de respirar. Morrer ainda é aqui; na vida, no sol, no ar. Ainda pode haver dor ou vontade de mijar”. A morte já é, morrer está sendo. É devagar, pouco a pouco, a cada mililitro e a cada miligrama. A morte é o destino. Alguns são Amelie Poulain e entendem esse destino como fabuloso, enquanto outros o descrevem como uma incógnita ou um fim. Morrer é o processo, o caminho, a trilha que nos entrega ao destino.

Em 14 de Fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager 1 fotografou a Terra a uma distância próxima dos 6 bilhões de quilômetros. A distância fez nosso planeta parecer um pálido ponto azul. Carl Sagan batizou seu livro, lançado quatro anos depois da fotografia, com esse título: “Pale Blue Dot”. Ele reflete sobre o lugar que chamamos de casa e diz que esse pálido ponto azul é o único lugar que conhecemos como lar. Todo covarde, medroso, herói, filantropo, altruísta, egoísta, toda mulher ou homem, cada pessoa nesse ponto azul o conhecem como lar. Mas, além desse fato, outra coisa também é comum a todos os andantes da Terra: a morte. Alguns morreram antes de nós; outros vão morrer ao mesmo tempo que eu ou você; outros morrerão depois de nós. Uns terão sua morte dada como precoce; outros, “já vão tarde” – mas de Jeff Bezos ao sujeito mais miserável do qual jamais ouviremos falar, isso é certo: todos vão morrer.

Cada milhão na conta é estar morrendo, como cada centavo perdido também. Todo amor vivido é estar morrendo, assim como toda rejeição. Não há clero, leigo, santo, pecador, louco ou são que não esteja morrendo. É dessa inevitabilidade que eu tenho medo, porque, como dito popularmente, “pra morrer, basta estar vivo”. Morrer é agora, morrer é doído, morrer é estar indo, mas ainda é estar aqui. Morrer é surpresa. Por mais que se saiba que a morte pode estar na virada da próxima esquina, jamais se soube a hora exata e em qual esquina ela está. Quando ela quer, aparece – como quem é vivo, que dizem, sempre dá as caras uma hora também. Mas até que o encontro com a distinta senhora aconteça, é preciso passar pelo processo. E é desse medo que nasce minha pergunta: como estamos morrendo?

Acumulamos porres, contas, vontades, reclamações. Queremos calor no frio, queremos o inverso, depois queremos o “avesso do avesso do avesso”. Uns querem a razão, outros a felicidade, outros querem a felicidade de ter a razão e uns querem a racionalidade de ser feliz. Não importa, as coordenadas no GPS existencial continuam nos conduzindo, recalculando rotas, virando direitas e esquerdas rumo ao inevitável. Enquanto você morre, deixa eu te perguntar: quantos abraços você já entregou, já recebeu, já deixou pelo caminho? Quantos nãos você já disse? Quanta gente você já precisou despedir, deixar ir e quantas outras você tomou pra si? A quantas já se deu?

Essas perguntas são pertinentes; afinal, a morte é solitária, mas morrer não. A gente não morre – ou não deveria morrer – sozinho. Estamos todos morrendo juntos. Você tem morrido junto de quem? O desejo de ser lembrado após a morte, de deixar lembranças e legados é bem comum, mas há uma ideia de que seremos dignos de lembrança pelo modo como vivemos. Pois é, talvez por isso tanta gente queira dar rumos extraordinários à vida, como se a vida fosse um imperativo de ação sem qualquer negatividade, falha ou falta.

Alguns querem apagar de suas trajetórias todas essas inglórias, esses nãos, essas ausências. Talvez seja isso que nos confunda tanto quanto ao sentido da vida. Queremos que a vida tenha sempre um sentido pleno, um grande propósito, um ideal digno dos memoráveis, mas não levamos em conta que os dias a mais são dias a menos. Enquanto a gente morre, a gente muda. O grande propósito de hoje pode ser uma piada amanhã. As pessoas mudam, os rumos mudam, os conceitos mudam, a vida muda. O que não muda é que estamos morrendo – e enquanto morremos, damos forma à nossa memória. Se vivemos para os propósitos gigantescos destinado aos grandes, perdemos a graça do morrer enquanto mudamos os planos. Casar aos 26, ter filhos aos 27, se aposentar aos 65. Aí os anos vão embora e a gente está solteiro aos 34, não planeja filhos e nem sabe se vai conseguir se aposentar. Interpretamos a vida como um horizonte, sempre dois passos distante a cada dois passos, porque entendemos por vida uma construção contínua do futuro no agora, tendo o que já se foi como parâmetro.

Morrer é diferente. Morrer, a gente morre um pouquinho a cada agora, sofre e ama como se o tempo fosse uma massa de bolo: açúcar, ovo, farinha, fermento, leite. Uma vez batidos, são todos uma coisa só. Passado, presente, futuro são exatamente assim. A diferença é que quando vemos que o tempo não é uma sequência de minutos que vão me dar a fortuna da vida amanhã, a gente se permite sofrer agora, chorar agora, mas ser feliz e amar agora também. Eu poderia morrer enquanto culpo o mundo por minhas mazelas, poderia escolher caras para apontar dedos e despejar mais culpas. Eu poderia morrer enquanto xingo meu clube de futebol favorito, enquanto odeio meu chefe ou enquanto desejo o insucesso de um desafeto. Nada indigno nisso; afinal, somos pessoas e, assim como pensamos e sentimos, também morremos diferente. Mas eu prefiro morrer nos abraços, nos beijos. Prefiro morrer enquanto transo, enquanto gozo, enquanto como e bebo, enquanto sou todo ouvidos e colo ou enquanto eu preciso de ouvidos e colo. Morrer nos atrasos, nos encontros em ponto, nos minutos a mais de sono, nos tapas no despertador ou no acordar afoito antes que o alarme toque.

Eu quero morrer entre amigos, sendo amigo. Eu quero morrer enquanto celebro a minha cama arrumada, minha comida, meu conforto mínimo conquistado com meu esforço. Quero morrer na distância dos ou nos carnavais, no desarrumar das camas ou comendo um fast-food. Porque eu tenho medo de morrer trilhando o chão da solidão, da dor, do desafeto, da distância imposta pela desavença. Da morte, eu não tenho medo; mas tenho medo de morrer. Talvez, na verdade, eu tenha medo da sensação de estar morrendo errado. Sim, morrendo errado. Deixando que os dias passem somando desventuras e desamores bem mais que os pequenos afetos, colhidos no pé de relacionamentos, como acerolas maduras. Morrer errado é quando o viver certo significa ego acima de tudo e o eu acima de todos.

Não, não proponho aqui reflexões rasas sobre o eu e o ego. Não falo do egoísmo de se pôr em primeiro como cuidado, mas como merecedor de toda benesse. O eu antes do outro que significa vida a mim, morte ao outro. Eu não quero morrer sabendo que deixei um rastro de desapontamentos porque não
respeitei meu limites e quis me dar quando já não me tinha, ou quis ganhar aquilo tudo que não dei. Eu quero o amor que se realiza no me contemplar como pessoa que se ama, que assim se permite trocar com o outro, que se recebe de volta a partir do outro. Não quero do outro o que já tenho, mas quero o que nele é sim e em mim é não. Quero a negatividade, o negativo em mim que se equilibra no positivo dele, e quero retribuir com o mesmo. Me construir inteiro, para que assim não sejamos metades, mais dois inteiros se fazendo nós. Eu quero morrer fazendo nós, desatando nós, quero morrer eu, me reconhecendo em nós.

“Não tenho medo da morte, mas medo de morrer sim. A morte é depois de mim, mas quem vai morrer sou eu”. Até que a morte nos separe, quero seguir morrendo vivo. Quero todos os brindes e lutos, baques e lutas, sortes e surtos que me couberem. E continuar rumando o inevitável, até que chegue o momento derradeiro. “Aí nesse instante sim, sentirei quem sabe um choque. Um piripaque, um baque um calafrio ou um toque. Coisas naturais da vida, como comer, caminhar… Morrer de morte matada, morrer de morte morrida. Quem sabe eu sinta saudade, como em qualquer despedida.”


Diego Neves é músico integrante da banda Legrand, designer gráfico, sociólogo em formação e aspirante a escritor.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *