BIXALEIJADA, ESPELHO CONVEXO DA FALTA EM CORPOS COMPLETOS

Atmosfera de quase noite. Verão?

Um corpo branco pelado, deitado em grama aveludada. Peito pra cima, ambas mãos sobre o torso. O jovem encara a câmera, me encara, nos inquire algo… Seu pescoço tensionando um movimento de aproximação. A superfície desse corpo é foco de luz surreal.

Farol de carro?

Lanterna de caça?

Uma ameaça.

Segue encarando com seus dois olhos fitos. A superfície acesa da pele pálida contrasta com linhas e manchas tatuadas; pintas, cicatrizes e pelos texturizam um tato orgânico. Da barriga, entre umbigo e púbis, brota um tubo que contorna o quadril, prendendo toda massa corpórea ao chão. Tensão entre inércias. A pulsão de vida na imagem. Série de sensações no meu corpo diante de outro corpo que me olha.

Numa biblioteca da Yale University (onde estudava na época), na lombeira pós-almoço, me deparei com o trabalho de Robert Andy Coombs enquanto corria olhos pelo Grindr – ambiente em que fotografias pululam, mas onde não são habituais confrontos tão arrebatadores. O nome do perfil com essa foto pungente era CripFag = “BixaAleijada” em pejorativo português, homofobia e capacitismo cotidianos. Logo saquei: temos aqui um artista! Hackeando convenções de interação das masculinidades que se desejam e se repelem, conectam e bloqueiam. Tresloucada reprodução dumas coreografias falidas e fálicas. De recortes, julgamentos, projeções, mostra, esconde, vai-não-vai, já-foi.

Na descrição: mestrando em fotografia buscando modelos pro seu trabalho. Mandei ‘hi!’; me intimou num ‘up for?’. Em poucas horas, me encaminhava para a School of Art, onde ocorreria uma discussão sobre o work in progress desse artista que me atiçou tantas questões. Da audiência, pude ver mais quatro fotografias feitas pelo CripFag – não mais pela telinha, mas em grandes impressões em papel metalizado, iluminação de galeria.

Na cadeira de rodas, ele falou brevemente da obra, patentes explorações nas/das “interseções de ser um homem gay com deficiência e suas aventuras íntimas/sexuais” – como também diz em seu portfólio online. Fomos tomar café e seguimos trocando. Dois cis-gays unidos pelo Grindr, compúnhamos uma amizade com pitadas de curadoria. Conversas perpassando nossas experiências, cada qual num corpo, consigo e com outros corpos. Limites, estigmas e privilégios, estórias de vida e expectativas (sexuais)…

Frequentemente degringolando sobre as fotos que Robert maturava, e um vídeo que vinha editando. Sempre vida-arte-trabalho. Tratamos de como expor esse caminho. Tantas relações possíveis entre imagens, séries, delas com coisas do mundo, fora e dentro de cada pessoa. Pois todo mundo é num corpo! E todo corpo tem água…

Para minha primeira contribuição nessa Trama, não pude querer trazer outra coisa que não uma apreensão de inquietações desencadeadas em mim pelas intervenções de Robert. Reflexões afetivas sobre um trabalho artístico que venho acompanhando – sucessivas surpresas. “Quebrei o pescoço em 2009”, conta. Decorreu dum salto ornamental de trampolim. A ruptura traumática no milésimo dum segundo que o tornou tetraplégico veio a ser poeticamente eternizada em retratos de corpos soltos no nada. Captura inequívoca dum estado ambíguo entre queda e voo, série intitulada diretamente Fly/Fall.

Um ginasta jovem e abertamente gay entrou numa rotina médico-terapêutica com especialistas em cuidado do corpo que não se envolviam na dimensão do desejo, do prazer – fluidos que não se dissipam num estalar de vértebra – para “… me ensinar como meu corpo funciona sexualmente depois dessa mudança catastrófica”. Mas, Yes, we fuck!

Logo, “pornô em cadeira de rodas” virou chave de suas buscas por novas identificações no mundaréu de vozes e visões online. Tampouco ajudou muito… E, depois de anos explorando(-se) no novo corpo, consigo, se lançou num universo sem mapas para encontrar outros caras desejosos de experimentar esse corpo com ele. A fotografia entre registro e poética das maneiras como esses contatos se deram, performando cuidado, intimidade, realizações de fetiches e tantas felicidades clandestinas que habitam corpos em desejo – ainda que nem as pessoas sem deficiência venham a explorar e tentar viver essas latências…

Alguns clichês de pornografia e erotismo resvalam a todo tempo em seus ensaios-experimentações com boys e a cam, articulados a repertórios do gozo que se escondem na falta de termos. E sua ‘mania’ de encarar a gente, indagar daquilo que temos dentro e se revira, se inquieta para tantos lados, fricciona a complexidade do desejo, da tatilidade libidinal que arrebata os olhos para além da imagem que ele põe no mundo.

Corpos de distintas cores, tônus e gestuais. Homens sem deficiência que posaram para sua lente compuseram coleção pessoal Bobby’s boys, enquanto autorretratos e fotos de outros homens com deficiência, seus corpos nus e extensões – aparelho auditivo, muletas e cadeira de rodas – formaram Disability and sexuality, exacerbando o tesão palpitante dessas corporalidades que escancaram a falta de algo, a iminência dela, e a força das fatalidades em tudo o que vive, do caos em escala genética e vivencial. Também nos encaram! Não se resumem à deficiência. Afrontam o como nos resumimos nós, pessoas sem deficiência, que muito menos sabemos da potência de habitar cada recanto do organismo em que vibramos.

Hoje, Robert vive sua arte por Miami. Antes da pandemia, percorria orlas com a câmera no colo, capturando homens jogando e treinando seus corpos no horizonte. Diferente do voyeurismo que conhecemos no Brasil pela janela indiscreta de Alair Gomes, Rio dos 1970, o CripFag traz seu corpo sobre rodas e sua voz carismática em contato direto com os fotografados. Ostenta a capacidade de se infiltrar na camada de saliência de corpos por aí, se apropriando dum poder oblíquo do esvaziamento libidinal que pessoas sem deficiência impugnamos sistematicamente a outras corporiedades. Robert Andy Coombs nos vira um espelho convexo, faz nítida a versão resumida com que nos contentamos em viver nossos corpos ‘tão capazes’ e ‘completos’…


Talisson Melo é Artista-pesquisador. Doutorando em Sociologia e Antropologia na UFRJ. Publicou o livro “Mesmo Sol Outro” com Carolina Cerqueira (2018). Atualmente trabalha em projetos curatoriais-editoriais e de pesquisa em Montevidéu, Juiz de Fora e Nova York – emaranhando artes visuais, poesia, design, arquitetura, cinema, história e ciências sociais. @talisson.melo @mesmosoloutro


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