Reconhecer Brasis é para Ontem

É tudo pra ontem. Esta ideia se refere a parte do título do documentário lançado por Emicida no final do ano de 2020. Este trecho, sem nenhuma outra associação, se mantém aberto sobre o que tem necessidade de receber a nossa atenção “pra ontem”, ou seja, o mais rápido possível. Ao contextualizá-lo com a narrativa do documentário, entendemos o que a pessoa que escolheu o nome do documentário, junto com roteirista e equipe de produção, entende que precisa receber a nossa atenção “para ontem” ao discutir e refletir o Brasil.

É um documentário longo, denso, que traz para a sua construção diversos pontos que carecem de atenção individualmente. O filme se desenrola em cerca de 1 hora e 30 minutos e traz em sua narrativa, antes de tudo,  a trajetória de construção do álbum AmarElo (2019): apresentação das inspirações que foram imprescindíveis para a construção do álbum, bem como do cantor enquanto sujeito e das subjetividades que o atravessam. Quanto a outros elementos presentes no documentário, pode-se destacar discussões políticas, sociais e culturais que se aproximam do debate sobre a população negra do Brasil. O documentário se apresenta como uma outra perspectiva de Brasil, a qual não tem presença nos espaços oficiais quando se reflete algum aspecto do país em que vivemos, sejam eles sociais e/ou educacionais. Dessa forma, esta produção se une a outros dispositivos – que aqui entendemos como dispositivos de educação não formal -, como por exemplo, o desfile da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira quando no seu enredo para o ano de 2019, se propõe a questionar A história que a história não conta[1], disputando no espaço público a ideia de outros Brasis.

Após mais de um mês de lançamento, é possível nos depararmos com algumas discussões, críticas, análises e threads rondando os temas que são apresentados no documentário. A intenção aqui não é promover uma resenha crítica ou resumo do documentário, entendendo que este movimento já foi feito anteriormente, por diversas pessoas, sejam negras ou não, elogiando ou apontando pontos que são críticos e carecem de atenção. Acredito que este espaço se apresenta, antes de tudo, como oportunidade de manter este instrumento no debate público, circulando, promovendo uma das funções ao qual entendo para o qual ele foi criado: apresentar outros Brasis. Portanto, tenho por intenção incentivar que vocês a partir de agora observem as minúcias daquela longa produção fílmica.

Ano de 1978, em meio a uma ditadura militar que perseguia e reprimia aqueles que consideravam adversários políticos e ideológicos do regime, algumas pessoas dissidentes da ideia de “democracia racial” – que era, até então, a interpretação oficial difundida sobre as relações sociais e culturais brasileiras no que tange às diversas raças, sociologicamente interpretadas, que constroem esta nação. Um grupo de pessoas se dirige à praça da Sé, em São Paulo, a fim de ler publicamente um manifesto. Como consequência dessas ações, formou-se o MNU (Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial).

Este não foi o primeiro movimento social, político, religioso ou cultural a ser formado principalmente por pessoas pretas. Na verdade, pode-se elencar a existência destes desde o período da colonização. Podemos interpretar estes sujeitos enquanto atuantes na sociedade em que estavam inseridos, por mais que submetidos a um sistema de violência e apagamento de suas subjetividades.

Este movimento social, formado em 1978 e relembrado pelo documentário, se constituiu como um dos principais motores para reivindicação do reconhecimento público da participação de pessoas negras na construção do Brasil enquanto nação. Na constituinte entre 1986 e 1988, havia reivindicações de pessoas ligadas ao MNU para a inclusão de demandas deste recorte populacional na carta, como por exemplo Abdias do Nascimento. Após a redemocratização, diversas pessoas públicas estiveram defendendo leis e projetos que apresentem outras perspectivas sobre pretos e pardos.

A proposta de revisão da História e da Cultura brasileira é uma das principais pautas de movimentos sociais. Reivindicações que chegaram a se transformar em leis. Como por exemplo a 10.639/03, que define a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira nos diversos níveis educacionais. Wanderson Flor do Nascimento, pesquisador de Filosofia Africana e professor da UnB, ressalta que a importância desta lei “abriu espaço legal para que essas outras vozes pudessem ser trazidas de modo respeitoso, cuidadoso, para o espaço escolar, para além dos estereótipos racistas que circundam as pessoas negras.” (NASCIMENTO, 2020, p. 39)

Este debate já existe dentro do espaço da academia há tempos. Novamente citando o desfile da Mangueira de 2019, o carnavalesco, ao ser questionado sobre a o embasamento para a construção do enredo, afirma que procurou por teses e dissertações[2].  Há uma barreira que impede com que os resultados destas pesquisas cheguem à população em geral.

Dessa forma, é importante perceber a narrativa oficial sobre a história do Brasil e como ela não representa a população em geral. Perceber que, com o passar dos tempos, elementos que questionam as narrativas oficiais sobre a história do Brasil têm, cada vez mais, saído dos muros da academia e atingido espaços culturais de divulgação de informação em massa. Perceber que os Brasis estão produzindo por si suas próprias perspectivas do processo histórico e, assim, promovendo tensionamentos contra a imposição que há décadas tem sido feita. Perceber que a nossa experiência não se resume à experiência eurocêntrica é para ontem.


[1] Trecho do samba enredo da escola.

[2] Como foi citado pela apresentadora Fátima Bernardes, durante a transmissão do desfile na TV Globo.


Luan Pedretti é mestrando em Educação pelo PPGE/UFJF, professor de História, integrante do Movimento Negro em Juiz de Fora pelo Coletivo Negro Resistência Viva.


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