A prática esportiva nas telas de João Carriço

João Gonçalves Carriço (1886/1959) é mineiro de Juiz de Fora. Era cinejornalista, cartazista, cenógrafo, fotógrafo, exibidor, produtor cinematográfico e proprietário do Cine Theatro Popular e da produtora Carriço Film. Em 23 anos ininterruptos (1933/1956) montou cinejornais que o transformou em um dos pioneiros do cinema em Minas Gerais e no Brasil. Atuou na construção do projeto nacionalista e trabalhista de Getúlio Vargas. Reconhecidamente, o Estado nos anos 1930 e 1940 produziu materiais que permitiram o surgimento de imagens enaltecedoras de Vargas. Esta representatividade pode ser vista nos cinejornais de Carriço.

No Catálogo da Cinemateca Brasileira (2001) consta o registro de 236 cinejornais do juiz-forano. Parte da produção de Carriço foi perdida ao longo dos anos. Entre os temas capturados por sua lente estão festas religiosas, militares e populares, como carnaval, Dia do Trabalho, e práticas esportivas. O volume da produção é representativo, além de ter contribuído para a popularização do público. Na época, o acesso ao cinema era elitizado. Quando Carriço adequou a funerária do pai para criar o Cine Popular com preços acessíveis ficou conhecido como “o amigo do povo” – nos intervalos distribuía café e bombons. Ele defendia acesso à diversão como direito à cidadania e adotou os lemas: “filme que passa para um, passa para cem” e “Cinema do povo para o povo”. O slogan da produtora impacta até hoje: “Carriço Film, tudo vê, tudo sabe, tudo informa”.

Parte de seus cinejornais ganhou as telas do país. O material tinha distribuição nacional, através da Distribuidora de Filmes Brasileiros (DFB) e, mais tarde, pela UCB. Para escrever este texto, foram selecionados cinejornais, exibidos de 1934 e 1951. São 30 temas entre partidas de futebol, vôlei, tênis, basquete, corridas de carro, bicicletas, atletismo e ginástica escolar ou militar e a chegada do Flamengo ao Rio de Janeiro depois da excursão à Europa, em 1951. Os eventos atraiam muita gente presente nas arquibancadas, calçadas, varandas, janelas e marquises do ambiente urbano.

A preocupação com a educação física e a relação entre esporte e civismo marcaram o regime de Vargas. Nos anos 1920, a educação física passou a ser conectada com princípios da eugenia. A atividade era exaltada como fonte de energia e saúde, capaz de promover melhora nas qualidades físicas e morais na nova raça brasileira. Lúcia Lippi Oliveira (2019) reforça que a educação física também esteve ligada à segurança nacional. O Estado tentava se conectar com a juventude por meio do esporte, “considerado o principal meio capaz de criar o ‘homem novo’, criador e criatura do Estado Novo” (1937-1945). Eugenia e segurança nacional formaram o binômio central que iria contribuir para a formação do jovem “sadio, disciplinado, nacional” (p.358).

Entre as curiosidades presentes nos materiais estão:

Vôlei feminino: em uma escola, mulheres bem vestidas na plateia, com chapéus e casacos de pele, olhares curiosos voltados para a câmera (um dos aspectos de seus registros era a possibilidade da população local “se ver” no Cine Popular, cujo público era formado por ricos e pobres, homens, mulheres e crianças). Jogadoras chamadas de “encantadoras senhorinhas” e outros adjetivos tentando inseri-las em um espaço ocupado pela graciosidade, fragilidade, beleza e merecedoras de cuidados. Em outra partida, a plateia é descrita: “A culta assistencia applaude com enthusiasmo as gentis jogadoras”. Interessante perceber que no ambiente escolar, a escolha das palavras nos leva a um local onde há a presença da intelectualidade, do culto ao saber. A torcida é composta por mulheres, homens e crianças.

Futebol: uma partida entre times locais lotava a arquibancada. Carriço também acompanhou Tupi e Vasco com inúmeras imagens da torcida, formada por militares, mulheres, crianças e homens. Depois, Botafogo e Tupi. As arquibancadas estavam cheias e havia pessoas no gramado. Entre o público, mulheres com casacos de pele, autoridades civis e militares. Todos olham para a câmera e sorriem. Os mais simples também aparecem. Outro jogo, no período analisado, foi entre as equipes de Juiz de Fora e Belo Horizonte, uma “demonstração brilhante da técnica e da disciplina do futebol montanhês”

Ciclismo: o texto mostra a importância da prática – “Juiz de Fora, a Pérola Mineira, também sabe dar valor ao sport”. Muita gente na rua, nas calçadas, crianças brincando diante da câmera. “Os vencedores são recebidos e acclamados com vivo enthusiasmo pelo povo em geral”, reforçando o reconhecimento aos atletas. Em outra prova, o público compareceu, assistindo das calçadas. Depois que as bicicletas passam, as pessoas invadem as ruas, em festa. Outra “interessante competição” foi o cliclismo dos entregadores. Valorizar trabalhadores era uma das premissas de Vargas. Promover uma corrida com entregadores era enaltecer a categoria. As imagens contribuem para isso – uma cidade com primorosa arquitetura com seus casarios belíssimos e muitas árvores – cenas histórias de uma cidade que não existe mais.

Tênis: o clube Dom Pedro foi considerado como “O mais confortavel da cidade”. As presenças femininas recebem destaque textual: “Gentilissimas torcedoras aplaudem com delirio os jogadores em campo”. Uma divisão de gênero e das funções sociais que cada esfera ocupa na década de 1930.

Ginástica em escolas: “Varios aspectos da selecta assistencia o mais fino ornamento de nossa sociedade”. As cenas são das pessoas no pátio, crianças uniformizadas desfilando ou passando em revista e o público observando a movimentação. “Gymnastica, interessantes numerosos de sueca, rithymica e de bastão”. As crianças se apresentam num movimento sincronizado de abrir e fechar de braços.

Basquete: Muita gente assistindo, até nos muros. As mulheres receberam créditos – “Graciosas e gentis torcedoras que são surprehendidas pela nossa objectiva”. O público foi reverenciado – “Lindos aspectos da selecta assistencia ali presente”, com imagens do público em volta da quadra.

Corpos em movimento: festa no 2º Batalhão da Força Pública de Minas, com exercícios dos “briosos” soldados. Braços para cima, para baixo, corpo de um lado, do outro. Armas para cima, para baixo. E a câmera acompanhando tudo.

– Atletismo: Atletas correndo pelas ruas além de pessoas comuns e crianças. A única mulher coloca medalhas nos atletas. A população olha para a tela, aponta e sorri. Homens de terno e gravata tiram seus chapéus para saudar a câmera.

Hipismo: “Esteve presente a esta festa elevado número de pessoas da nossa elite social assim como altas autoridades e representantes da imprensa”. Nas imagens, pessoas no gramado, carros estacionados e grupos de homens, mulheres e crianças. A presença da bandeira é uma importante força simbólica do Estado nacional.

Corrida de carro: A Prova Automobilística Getúlio Vargas fez uma passagem estratégica pela cidade parceira aos ideais getulistas. O ex-presidente deu nome à outra atração esportiva. O Segundo Raid Automobilístico Getúlio Vargas trouxe a Juiz de Fora concorrentes de peso: Chico Landi, Júlio e Catarino Andreata, Francisco Marques e Aristides Bertel. As ruas foram tomadas e houve disputa do espaço nas janelas e nas marquises. As cenas são ótimas pela curiosidade de uma corrida no ambiente urbano, mas o destaque são os populares lotando ruas e avenidas e se divertindo com as câmeras.

Flamengo: Carriço foi ao Rio de Janeiro acompanhar o retorno “do Flamengo vitorioso”. A equipe filmou a chegada do time de futebol após turnê na Europa. Pessoas acenavam para o avião que trouxe uma bandeira do Brasil na janela do piloto. O registro representa a importância do tema. A produtora teve que ir à capital federal, sem falar na associação do Flamengo, que tinha a simpatia de Vargas, com a bandeira brasileira posta na aeronave. A informação subjetiva contribui na associação do time rubro-negro à equipe representativa da nação.

Coleção Carriço Film – Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. Educação e emancipação (1956-69/2020)

KANT, I. O que é Esclarecimento? (1783/1985)

SAFATLE, V. Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (2020)


Renata Vargas é jornalista e professora do UniAcademia. Doutoranda em História pelo PPGHIS/UFJF. Integrante do grupo de pesquisa Brasil Republicano – Pesquisadores em História Cultural e  Política, da Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Mestre em Comunicação, pela UFJF.


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