NÃO TEVE CARNAVAL! MAS O QUE É (OU O QUE PODE SER) O CARNAVAL?

Em tempos normais, passado o Réveillon, já começaríamos ver a divulgação da programação dos blocos e de festas pré-carnaval. Todo ano surge o discurso de que “o ano só começa depois do carnaval” – mesmo que algumas atividades sejam retomadas dias ou até um mês antes da festa, como as aulas, por exemplo.

Não é novidade a pandemia da COVID-19, que, no momento de escrita desse texto, já tirou a vida de 230 mil brasileiros, e vem trazendo tragédia para diversos países do mundo. A principal recomendação para evitar a contaminação, como tem sido repetido desde março do ano passado, é o distanciamento físico. Levando em consideração o momento, é preciso que percebamos que não é momento de festejar, ou aglomerar. É preciso que tenhamos ações diferentes daquela cenas que vimos nas praias na virada de ano.

Mas para além da festa, o que é o carnaval? o que o carnaval representa?

Desde pequeno, crescendo entre evangélicos e católicos – ou seja cristãos – ouvi todos os tipos de referências ao carnaval. A festa da carne, a festa pagã, festa em que os demônios andam soltos. É preciso levar em consideração essa ideia cristã, daqueles que julgam e taxam o carnaval a partir de suas religiões. É preciso considerar também aqueles que simplesmente não gostam do carnaval. Mas é preciso entender que o carnaval é muito mais do que festa.

O sociólogo Clóvis Moura, em seu livro A Sociologia do Negro Brasileiro, dedica algumas páginas pra pensar o carnaval. Após debater sobre a ideia de grupos específicos e de grupos diferenciados, o autor aponta no carnaval – ou melhor, nas escolas de samba – um exemplo negativo de grupo diferenciado. No entendimento de Moura, os negros que se concentravam nas comunidades, percebiam nas escolas de samba uma forma de lazer e resistência, quando:

os figurantes das diversas escolas, durante o carnaval, ao desfilarem, realizavam catarticamente o seu desejo de participação social, de integrar-se e dominar a cidade branca. […]
era a dominação da cidade pelos habitantes do morro, através da sua organização e da sua contracultura.”
(MOURA, 2019. p. 180-181)

A partir da citação acima, podemos fazer algumas afirmações. A primeira delas é o carnaval, especialmente o surgimento das escolas de samba em torno de comunidades negras. E também um momento de contracultura, onde aqueles marginalizados tomavam o protagonismo da festa.

“O carnaval era, assim, sociologicamente, uma festa de integração, mas, especialmente, de um ponto de vista mais analítico, um ato de autoafirmação negra. [..] O negro, dessa maneira, não via o carnaval como uma simpels festa da mesma forma que o branco vê. Era, de certo modo, o momento mais importante da sua vida, do ponto de vista de autoafirmação social, cultural e étnica”
(MOURA, 2019. p. 181-182)

Carnaval é resistência e autoafirmação negra!

De acordo com Moura, as escolas de samba ganharam destaque depois da sociedade branca perceber o caráter organizacional delas. Se apropriaram, embranqueceram socialmente e ideologicamente a festa – principalmente depois do interesse de grandes empresas e grupos em cima da divulgação que a festa propõe. Por isso, Clóvis Moura apresenta as escolas de samba como “um exemplo de degradação” da cultura dos negros, quando este elemento deixa de ser resistência e expressão de um grupo e passa a atender, principalmente, a interesses privados.

Com relação aos apontamentos de Clóvis Moura, lembramos também escritos de Luiz Antônio Simas, onde no livro O corpo encantado das Ruas este discorre que:

O carnaval é perigoso. O controle dos corpos sempre foi parte do projeto de desqualificação das camadas historicamente subalternizadas como produtoras de cultura. Este projeto de desqualificação da cultura é base da repressão aos elementos lúdicos e sagrados do cotidiano dos pobres, dos descendentes dos escravizados e de todos que resistem ao confinamento dos corpos e criam potência de vida
(SIMAS, 2019, p. 110)

A desqualificação do carnaval parte do controle dos corpos pretos. Da desqualificação da cultura preta.

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Encaminhando para as conclusões, além dos entendimentos que foram expostos acima, devemos pensar no carnaval como um momento de movimentação da economia para cidades turísticas. Vivemos em uma sociedade de capitalismo dependente, como entende Clóvis Moura. Com isso, até que este sistema caia, a população precisa sobreviver. O Carnaval como forma de trabalho também é elemento a se considerar, seja nos barracões de escolas de samba, seja nos dias de folia os diversos vendedores ambulantes, funcionários de transportes públicos, entre outros.

Outro ponto que podemos pensar do carnaval é a perspectiva política. Apesar dos apontamentos feitos por Clóvis Moura, algumas escolas de samba ainda trazem temas políticos para seus enredos, que muitas vezes são próximos da realidade de suas comunidades, por exemplo o desfile da Paraíso do Tuiuti de 2018 questionando a narrativa sobre a escravidão no Brasil, o desfile da Mangueira de 2019 questionando a História oficial do país, ou desfile da Mangueira de 2020 questionando a imagem do Jesus eurocêntrico.

O desfile das escolas de samba já nos mostrou diversas oportunidades de politização de temas e transformação destes em arte para se apresentar na avenida durante cerca de 60 minutos. Com um enredo, alegorias, fantasias, bateria e um samba enredo que dá o tom do discurso. Não são todas as escolas nem em todos os anos politizam seus debates, isso é algo que devemos considerar.

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Mesmo levando em consideração tudo o que foi exposto acima, a certeza que já tínhamos é que, em 2021, não haveria carnaval; e não houve. Foi preciso que não houvesse carnaval em 2021. É preciso que a gente se solidarize com as famílias que perderam parentes durante esta pandemia. E é preciso que sejamos conscientes com relação à circulação do vírus.


REFERÊNCIAS:

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.


Luan Pedretti é mestrando em Educação pelo PPGE/UFJF, professor de História, integrante do Movimento Negro em Juiz de Fora pelo Coletivo Negro Resistência Viva.


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