Desnaturalização da(s) (a)sexualidade(s): reflexões sobre a “naturalidade” da monogamia nos tempos atuais

“Sexo e (a)sexualidade(s) também são culturais”

A proposição dessa frase pode causar muito estranhamento para algumas pessoas. Afinal, compreender que isso não é “natural” ou “biológico” pode ter avançado em alguns pontos, mas ainda precisamos caminhar para a desnaturalização de outros.

Exemplo disso é que, atualmente, é muito mais fácil compreender uma questão que, desde sempre, deveria ser óbvia: a homossexualidade, a bissexualidade e a transexualidade não são patologias passíveis de tratamento (ainda que a retirada desses termos dos manuais de saúde mental seja recente). Mas, e as outras letras que compõem o acrônimo LGBTQIAP+? Intersexo, Queer, Assexuais, Pansexuais, entre tantos outros, ainda lutam para que sejam reconhecidos de forma naturalizada e, também, garantam maior visibilidade.

Outros pontos que interferem em nossas visões sobre sexo e (a)sexualidade(s) também são culturais – muito mais do que imaginamos. Por exemplo: ainda estamos começando nos questionamentos da naturalização da monogamia como única forma possível de relacionamento. Isso causou um estranhamento para você? Pois é. A monogamia diz muito mais sobre relações de poder e sobre projetos de sociedade do que, essencialmente, da biologia.

O surgimento da monogamia

As forças que atuam sobre a permanência da monogamia no imaginário social são fortes. Um dos primeiros esforços para “naturalizá-la” veio com a sugestão de que nós somos uma espécie “frágil”: precisamos de cuidados por muitos anos da vida e, por isso, demandamos cuidados parentais por mais de uma década. O que, ok, faz sentido. Somos uma das poucas espécies animais que precisam acompanhar o “filhote” além do desmame para que possam sobreviver.

Diante disso, vale mencionar que nós, seres humanos, não somos apenas seres biológicos, e sim biopsicossociais; portanto, os elementos culturais também interferem nisso. Por exemplo, por que optamos por um modelo monogâmico parental estrito e não por uma cultura coletiva, na qual a comunidade seria responsável por esse processo de formação dos indivíduos? As estruturas sociais aparecem, aqui, como uma resposta para essa questão.

Fato é: muitos teóricos ao longo da história abordam como a monogamia surgiu junto com o conceito de família e, consequentemente, de propriedade. Etimologicamente, o termo surge do latim, do termo famulus, que significa o “conjunto de propriedades de alguém” – incluindo aí escravos, criados, servos e parentes. Segundo Engels, a estrutura familiar, tal como concebemos hoje, nasceria junto com a concepção de “bens privados”, para garantir a sua transmissão para herdeiros legítimos.

Daí temos o surgimento do patriarcado (o homem como cerne da família e no predomínio do poder), do controle sobre os corpos femininos (para que não existissem dúvidas sobre a paternidade, evitando herdeiros ilegítimos e transformando as próprias mulheres em posses nessa estrutura) e, por fim, da monogamia instituída como estrutura que sustentará esse sistema – sendo corroborada, ainda, pela nossa moralidade ocidental, com bases judaico-cristãs (a qual também legitimará, por meio do puritanismo, uma sociedade heteronormativa).

A não-monogamia como alternativa política

A não-monogamia, assim, ganha fôlego nos últimos anos não só por mostrar, em um contexto micro, que outras formas de se relacionar em nossa sociedade ocidental contemporânea são possíveis, buscando a liberdade de relacionar-se de acordo com o formato que lhe é desejável. Essa discussão é, também, política. E cultural.

Segundo o atlas etnográfico produzido pelo pesquisador George Murdock, temos mais de 800 sociedades diferentes em todo o mundo (para além da ocidental tradicional na qual estamos inseridos), e 80% delas possuem uma estrutura não-monogâmica (sejam elas poligínicas ou poliândricas). Acreditar que a monogamia surge apenas como um fator biológico é, assim, uma ingenuidade; afinal, tantas outras sociedades sobreviveram para além dessa estrutura, garantindo a sobrevivência da prole e daquele grupo social como um todo.

Então, trazer para o debate público que outras formas de relação são possíveis é, também, questionar a hegemonia vigente que baseia tantas outras estruturas nocivas socialmente, como o patriarcado. Não é à toa, por exemplo, que o conceito de “anarquia relacional” é um dos temas discutidos como uma das possibilidades (não a única) de se relacionar na não-monogamia: é a união de relações afetivo-românticas e afetivo-sexuais com um conceito político subversivo em essência, que visa estabelecer horizontalidades em todas as relações; parentes, amigos, colegas, parceiros, então, teriam o mesmo grau de importância, não sendo hierarquizados.

Assim, é importante entendermos: a monogamia não existe porque era a única forma (ou, ainda, como outros colocam, a melhor forma) de sobrevivência da espécie. Era uma das possibilidades e ganhou fôlego por questões culturais, sociais e econômicas que estão na raiz do seu surgimento. A naturalização promovida não é à toa. Ela sustenta uma estrutura social que é tão rígida, que temos dificuldade de subvertê-la completamente ainda.

Neste artigo, a ideia não é criar um antagonismo entre monogamia e não monogamia na esfera micro; o que quero dizer é: cada um que preserve seus interesses e se relacione como for mais confortável em suas vidas pessoais. A ideia é, sim, propor uma reflexão sobre a forma como nos relacionamos e sobre o quão difícil é para quem deseja viver sua liberdade afetivo-romântica e/ou afetivo-sexual de outras formas, quando há forças externas potentes atuando sobre seus modos de se relacionar todo o tempo. E pensarmos, também, no quanto, sexualidade e sexo não são apenas naturais e na influência das forças culturais e sociais agindo sobre isso, todo o tempo. Entendermos que nossas sexualidades são disputadas politicamente todos os dias, pelos mais diferentes motivos.

Desnaturalizar a(s) (a)sexualidade(s) (no sentido de relegarmos esse debate à esfera apenas biológica) é preciso, para podermos ter uma visão mais abrangente de algo tão intrínseco à nossa identidade e com tantas implicações para a existência de tantas pessoas em nossa sociedade.


Luciana Rodrigues é doutoranda em Ciências Humanas e Sociais e defensora de uma educação sexual consistente e responsável. Idealizadora do projeto Hacking Sex (Medium e Instagram).


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *