ONDE A VIDA SEGUE INTEIRA?

Lá onde minha vó mora, num tímido vilarejo encostado no morro, as pessoas são inteiras. Desde o momento em que a gente pula do ônibus e dá o primeiro passo para dentro da estrada de terra que leva à praça, tudo o que é nosso vem conosco. Junto com os pés sujos de barro, caminha minha família quando gritam que lá vem a neta da Maria Cabralinha. Logo em seguida, perguntam dos meus pais e fofocam do meu passado. Era uma criança tão sapeca, precisava de ver você. E o meu futuro anda antes de mim, cochicham ao meu ouvido: que é que anda fazendo lá na cidade? Vai estudar mais? Essas varandas falantes me veem toda.

Na porta da vó, onde sempre tem alguém escorado em um bom papo, chego com a mochila nas costas e um molho de couve que mandaram trazer. Aí, minha neta! Ocê tá com fome, né? Vem pra dentro, fogão já tá com lenha. E enquanto o fogo come a madeira e engrossa o caldo de galinha na panela de pedra, vó me vê toda. Escuta minhas fofocas da cidade e dá pitaco aqui e lá. Estuda com cuidado minhas queixas. Essa vida acelerada que ocê leva, é isso que te faz ficar com essa dor de cabeça, tá precisando de deitar mais na rede.

O fim de semana é assim: inteiro. As janelas das ruas me chamam para dentro e me oferecem café recém passado. Ninguém me vê só. Nem só corpo, nem só ego, nem só eu. Vó me manda ir benzer na Francisca e assim faço. Chego cansada da caminhada e me jogo na cadeira da cozinha dela. As ervas dos vidros em cima da mesa me investigam e ela me olha por cima dos óculos tal qual um gavião. Ansiedade, de novo, é, menina? Eu concordo com a cabeça e falo sem relógio cronometrando o atendimento. No fim, ela me alcança um pote com a tampa rachada. Três vezes na semana, toma o chá dessas plantas que trata. Mas não cura, hein? Essa vida sua é que adoeceu, num é ocê, não. Enquanto me acompanha para a porta, Francisca agarra meu pulso com força. Seu vô tá descansado, menina, preocupa com ele, não. Vai na igreja rezar uma Ave Maria para ele e vê se volta mais para ver sua vó, viu? Luto se cura com tempo e amor, num é com chá nem com pílula.

No domingo, Zé me espera no ponto da estrada e eu peço cinco desculpas pelos atrasos. Cabralinha num gosta quando você vai embora, eu sei. Minhas três bolsas cheias de comida vão no bagageiro e, na mão, volta só a caixa de ovos. Me sento ao lado da Lurdes e ela me atualiza do que não tinha tido tempo de ouvir. Diz que o tal do prefeito queria proibir a festa de Santo Antônio. Diz ele que num dá lucro para a cidade. Ocê vê um trem desse, num tem quem não fique bravo. E diz ela, ainda, que no dia seguinte estava todo o vilarejo na escada da prefeitura para comunicar ao homem que não ia cancelar o festejo coisa nenhuma. E assim foi feito: vai ter festa de Santo Antônio porque nem tudo é dinheiro.

A rodoviária da metrópole, quente e vazia, me recebe com silêncio. Na segunda de manhã, eu volto para o trabalho não mais inteira. Se na roça sou unidade, sou fragmento aqui na cidade. Cada lugar eu sou uma: no trabalho, sou a peça da engrenagem. Na terapia, sou a mente acelerada que precisa ser tratada. No médico, sou o órgão remediado. Em casa, sou saudade.

Vó sempre me diz que aquela gente não daria certo por aqui. A gente é roceiro demais, sabe, minha filha? E eu, apesar de sempre dizer que sei, talvez agora finalmente saiba. Quando a gente vive onde até os prédios competem para ver quem chega primeiro ao céu, a gente não consegue ser inteiro. Somos pedaços aqui, pedaços lá. É mais fácil assim… Facilita o controle das gentes — se a medicina medicar, a escola negligenciar, a psicologia acalmar e a igreja silenciar, controla-se boa parte do nosso todo. Fragmentada a vida, acalma-se a revolta, esconde-se o senso crítico, faz esquecer o fragmento político. Se perdem as varandas que falam e as lutas coletivas. Se esquece que dor nenhuma no mundo é isolada: até o luto é implicado. Fragmentar a vida facilita deixar morrer — sem ninguém ver, matam o sonho. E depois, o sono. Matam também as gentes. Depois, passam a pílula para não doer. Mas Francisca já avisou: luto não cura com remédio. E eu digo que o que cura: além de amor, é luta.


Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia e, quando ninguém está olhando, escreve e compartilha seus questionamentos e descobertas na página @fazerafetar.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *