O SONHO QUE COME A PALAVRA

Após tomar clonazepam, que deveria fazê-lo dormir, Victor Lanzie recebeu uma mensagem que falava sobre o passado recente. Não chegava a ser um libelo de acusação, mas, antes, o relato frio de uma testemunha honesta que apontava falhas de comportamento que ele insistia em desconsiderar. A questão, que vinha sendo tratada até ali exclusivamente no campo da fala, naquela noite de terça-feira, migrou para a escuta. Sem querer falar de si, preferiu ouvir. Atordoado com a notícia do crime culposo, ainda que sem dolo, Lanzie bebeu uma dose de whisky à cowboy tentando pegar no sono mais rapidamente. Dormiu, e dormindo, sonhou.

|Se viu primeiro na casa de Madá, em Mariana, reconhecendo o quarto sem forro no teto e com o assoalho todo em madeira barulhenta. Sentado na varanda, numa noite fria em que ventava e chovia, ele bebia vinho comendo salgadinhos chips e tendo nos pés um grande cachorro preto. Na soleira da porta estava a mulher de olhos e cabelos negros que perguntava. “Que fez você do que te deixei em mãos? Por que escolheu um caminho que mataria nós dois no dia de Pentecostes? Se sabes que sou feita de nuvem e que meu peito é um poço de águas escuras, por que não permaneceu apenas ali, parado e quieto, lançando seu balde, até que nós dois pudéssemos beber?” 

Victor não respondeu, num primeiro momento, na verdade, não compreendeu do que se tratava. Quando tentou abrir a boca já não havia varanda, e numa poltrona de linho um tigre imenso descansava no encosto da cabeça, emaranhado nos cabelos da mulher que sorria, se divertindo. Ele também se descontraiu um pouco, mas ela perguntou: “E porque me deu a chave da casa, se sabia que sou frágil e queria a chave da tua palavra e do teu olhar? Mentiu para mim, mentiu para você, para nós, ou estava alucinando? Diga a verdade, somente a verdade”. Victor quis se explicar, mas o felino saltou sobre ele que, enquanto tapava o rosto, caiu para trás, em uma banheira de espumas em que a mulher se banhava. Se via no canto um par de sandálias rasteiras, um vestido preto e a pulseira de pedra capaz de repelir más energias.

Quer entrar?

Claro que quero.

Mas me diz primeiro, por que me deixa pensar que você convida a todas para se banhar contigo? Não entrou na cachoeira fria ao meu lado, e fica sob os olhos de muitas pessoas. Se sabe que isso me fere, por que não colocou um ponto final? Por que não me escolheu?

Mas te escolhi…

E dos olhos da mulher escorriam lágrimas de leite e de mercúrio. Tantas que a banheira se fez piscina, e a piscina foi aos poucos se tornando grande como o mar. Sentado na areia agora ele escrevia com os dedos: “saudade”. As ondas apagavam os rabiscos e os transformavam em “perdão”. Victor Lazie ficou de pé. Apertou os olhos com força para tentar acordar, e quando se deu conta, estava em uma pousada colonial chamada Solara, em São João Del Rei, fumando um charuto italiano na janela. Não via a mulher, mas da varanda ouvia a voz que perguntava “E o que você fala de mim? E por que me conta suas histórias de outro tempo, se nosso é o futuro? Você mente, Victor? Se não mente, por que parece que faz assim? Eu não quero que me machuque. Tenho medo de morrer de novo…

Não existiam respostas na boca do homem que sonhava aquilo, pelo menos não respostas capazes de dizer, apenas um silêncio mórbido e que lhe tremia as carnes como se estivesse diante da cruz. De repente o vazio. Imensidão branca, plana, silenciosa. Choro de bebê. A figura descomunal de um Dorje Drolo com seis braços, vermelho, de cuja boca retumbava o som de explosões sem fim. A deidade espalhava fogo ao redor, enquanto dançava, sorrindo, sobre um cadáver no chão. O próprio Lanzie era pisoteado. Estava morto. Por um instante toda a cena se congelou. Depois se dissolveu. Sentada numa poltrona colonial, a mesma mulher, que agora era vento, mar, dakini, choro, dança, mas tinha olhos do tamanho da lua, perguntava, finalmente, “Abri minha casa a você, homem, você me traiu. Não foi com mulher, foi com palavra. Estou magoada e não acredito no amor.

Ali Victor Lanzie despertou. Eram 3h da manhã. Estava empapado em suor e o coração batia como se fosse romper a caixa toráxica. Sentiu no quarto um perfume que conhecia, mas dormia só. Estava só. Permaneceria só. Na parede uma luminária decorativa pendia, e no pulso um amuleto de boa sorte que ganhou em 2019, antes de viajar para longe. Não havia mulher, havia perguntas, mas não mais respostas satisfatórias, porque para algumas questões as palavras deformam as coisas e é preciso tempo em silêncio.

Manuseou novamente a mensagem que leu horas antes. Ela dizia do fracasso e da perda de um investimento grande. Não era texto de raiva, mas de dor. Estava falido. Fosse outro tempo e talvez pensasse em se matar pulando pela janela no nono andar, hoje não. Quebrou porque foi irresponsável. Se distraiu quando deveria ter mantido aquela lógica calvinista do amor ao trabalho ascético. Era culpado-inocente, juiz-penitente, e sabia que amanhã era preciso levantar e seguir, porque o que tiver de ser, será.

Victor Lanzie nunca existiu.

Vinícius Lara sonhava, e às três da madrugada acordou. Que o calendário tenha piedade e justiça do homem. Num instante pode ser que o máximo não baste, somos feitos de areia, mas sempre haverá o depois. Lá quando esse homem é feliz e todas as memórias se reeditam.

Depois, não agora.

Depois, quando a tempestade passar.

Depois, quando os meses não puderem apagar o registro do afeto.

Aí, então, não será sonho.

Pudesse voltar os ponteiros do relógio ou fazer um pacto com Nemêsis, e o faria.

Não te desejo mal e ainda gosto muito de você… fique bem.


Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


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