A política dos espectros

Não há cosmonautas…

porque não há cosmos.

 Jacques Lacan

No último sábado (29) vimos ascender às ruas em diversos centros urbanos do país multidões de manifestantes que reivindicavam o impeachment do presidente e condições humanitárias para o enfrentamento da pandemia. Foi uma mobilização massiva de pessoas que proclamavam de um certo lugar de urgência na qual a própria regra de não-aglomeração se encontrava suspensa por um caráter de exceção. Aqui cabe uma inversão dialética: quando o estado de exceção vira paradigma de lei, nos termos agambeanos, a exceção ante a lei da exceção precisa ser invocada enquanto levante contra o estado, deslegitimando politicamente o exercício do governo vigente.

Porém, se observarmos de outro ângulo algo de paraláctico começa a aparecer. Comecemos pela observação feita por Judith Butler que diz que quando corpos se aliançam buscando manifestar sua revolta e vulnerabilidade no ambiente das ruas isso não significa somente que as ruas viram palco de um ato performativo tornado, assim, visível. As ruas, na verdade, são tomadas, apropriadas e ocupadas neste gesto, como num exercício de reconhecimento daquele espaço de luta. Podemos dizer que não vimos e ouvimos apenas gritos contra o fim do genocídio agenciado pelo governo, mas auditamos uma presença redefinidora da lógica daquele espaço, que costumeiramente se vale do silêncio e da normalidade para fazer correr sua mortalidade. O fato de haver uma presença viva tomando posse das ruas poderia indicar que tipo de correlação de forças é produzida quando uma pressão popular se manifesta desta forma. Mas foi por ocasião de um cartaz erguido por um manifestante que me veio outra interrogação, a saber, sobre qual a dimensão ontológica da política que foi às ruas no dia 29. O cartaz dizia mais ou menos assim: “Não estamos todos. Faltam os mortos!”.

A mensagem não era mera retórica. Era um atestado de presença. Mas afinal, sabíamos exatamente que forças presentificavam-se naquelas multidões ou podemos desconfiar que algo de descentrador apareceu enquanto ouvia-se o coro das marchas, o som dos passos trocados e as conclamações em forma de gestos? Deixem-me elucidar melhor a questão. Retomemos a hipótese da questão paraláctica. Me aproprio aqui de uma noção consagrada por Slavoj Zizek, que é um autor que insistirá no conceito de paralaxe como imanente a uma série de registros da teoria contemporânea, fazendo notar aquilo que em Lacan é chamado de Real, isto é, a lacuna que separa o Um de si mesmo¹. À guisa de seus exemplos, é possível notar várias modalidades em que essa lacuna aparece: na neurobiologia (quando o Real puro se distingue do significado na medida em que percebemos que ao olhar um crânio por trás do rosto um vazio é revelado; não há “ninguém” ali); na distância entre desejo e pulsão (essa conversão que acontece quando o alvo da tarefa passa a ser não mais o objeto, pois, através de um desvio, o objetivo da ação é deslocado para a repetição do fracasso da tarefa de alcançá-lo); ou mesmo na própria definição de Real (pois o Real lacaniano é sempre negativo, desprovido de substância, efeito lacunar das diferentes perspectivas a respeito dele). Ainda é possível considerar a negatividade da paralaxe na oposição entre o sujeito e o humano. Atualmente, é um ponto conhecido pautar a exigência de pessoas humanizadas, distantes da perigosa vazão concedida pela subjetividade artificial, incontrolável e agressiva dos sujeitos. Mas cabe pensar que o sujeito, pelo menos em Lacan, não corresponde a nenhum núcleo identificatório. Ele é um lugar vazio, (como se) ocupando o lugar do “lugar” numa função estrutural pura. Aliás, ele só surge nos interstícios da comunidade “humana” substancial entificada em identidades falsamente absolutas, donde geralmente surgem as figuras portadoras do “universal” – que, invariavelmente, correspondem aos esforços violentos em que o particular é tomado como Verdade. Daí que para um bom lacaniano, a dimensão do inumano parecerá mais universal do que a do humano, já que as criaturas tidas como bestiais e bárbaras sofrem justamente em função de “humano em demasia”. A radicalidade desta posição pode ser entendida como uma renúncia à ideia de que existimos enquanto entes passíveis de realização na trama simbólica – o que é, na verdade, uma fantasia. Pelo contrário, se notarmos o paradoxo, a saída é outra: quando percebemos nossa “inexistência”, estamos, enfim, livres da existência, livres da fantasia.

Nesse sentido, voltando à questão posta pelo cartaz, quero arriscar uma formulação aos moldes zizekianos, por assim dizer: a pergunta sobre quais grupos, políticas, movimentos ou indivíduos estavam nas ruas aquele dia pode ser encarada através de uma visão paraláctica no momento em que dizemos que ali não estavam presentes grupos substanciais representando os falecidos, as vítimas ausentes, mas é que, de uma maneira subversiva, “ninguém” estava ali, exceto os fantasmas que atravessavam os poros e formavam uma massa inexistente, isto é, uma política espectral. A possibilidade de mortos e vivos estarem marchando pelas ruas só é realizável mediante essa síntese que “eleva” ambos à categoria de fantasma – que rondava aquele dia nos centros urbanos. Nisso revela-se a incapacidade de situar identitariamente as figuras presentes, já que elas não poderiam estar individualizadas, porém, paradoxalmente situada nos intervalos da aglomeração.

Essa poderia facilmente ser mais uma “ghost story” em que Phoebe Bridgers lê Lacan pra dizer que atrás de toda capa branca de fantasma está escondida um vazio absoluto cuja voz é um centro não-localizável. Mas aqui a conclusão é menos pretensiosa que parece ser. Talvez seja a hora de confrontarmos o existente com o inexistente, o substancial com o fantasma, a política dos vivos com a política dos espectros. Isso porque creio que seja o momento de nos havermos num nível onde somos mais autênticos – quando nos antecipamos e desarmamos a bateria de significados que desautorizam nossa existência. Quando cremos no nosso desaparecimento e anunciamos a existência como um impasse.


NOTA

¹Para ler mais sobre essa relação entre Zizek e Lacan, ver em ZIZEK, S. Interrogando o Real (2017).


Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.


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