BREVE SAUDAÇÃO AO PRETÉRITO IMPERFEITO

O cheiro de café recém passado fazia com que eu me sentisse um pouco mais perto de casa. Nana certamente estaria à pia, com os pés em suas pantufas, tagarelando sobre alguma vizinha enquanto esperava a água fervente terminar de mergulhar o pó. E eu, tão certamente quanto Nana, estaria à mesa já avançando nos biscoitos de canela, palpitando na vida alheia. Mas parecia ainda estar distante, mesmo que tentasse fazer do olfato minha bússola improvisada. A calçada, beijada pela chuva, esfriava meu corpo pela raiz e me convidava a acelerar o passo.

    Quando virei a esquina, vi a cidade achatar diante dos olhos. As janelas dos casebres invadiam as ruas com sons de televisão e cheiros que confundiam meu faro. Tinha fim de churrasco, perfume de criança e mirra queimando. O sol já caía e eu sabia que quanto mais adentrasse a Candinha, mais perdida estaria na noite. Passaram por mim três homens: Joaquim, abraçado a uma garrafa de cachaça meio vazia, balbuciando algo para mim. Seu Zé, o dono simpático da mercearia com sua sacola de pães, perguntando da minha avó. Vai bem, sim senhor. E João, que provavelmente tinha me visto ao longe e eu, tão desorientada quanto míope, precisei que ele estivesse alcançável às minhas mãos para que eu reconhecesse seus olhos escuros cintilantes por trás dos óculos, os mesmos que me faltavam.

  Nossas passadas desaceleraram o suficiente para que compartilhássemos alguns segundos de um vazio algodoento. Nosso pretérito se debruçava sob nossos ombros com a caneta nas mãos — escreveria sua continuação naquele domingo de maio? Eu podia sentir os pensamentos de João passeando pelo meu corpo. Queria encará-lo como eu fazia enquanto ele dormia, na certeza da imprudência noturna, analisando a constelação da sua pele e sentindo as nuances dos seus sonhos. Ele mirava meu chão e eu tinha muito para dizer. Ainda não achou seus sapatos? Ele escreveu no silêncio e voltou a me namorar por trás das lentes. Balancei a cabeça. Só meus pés sabem o caminho de casa. Queria perguntar se eu tinha lhe feito algum mal nas noites em que andávamos por essas mesmas ruas ou se era algo em mim que não lhe agradava ou mesmo se ele tinha apenas perdido o interesse como natural e tragicamente acontece.

Encontrei a varanda da minha casa alguns minutos depois, sem minhas respostas, sem mesmo tê-las dado a chance de me alcançarem. Nos despedimos, eu e João, com uma saudação silenciosa ao infindável espaço entre nós e demos as costas um ao outro. As calçadas sustentavam nossos corpos desconfortavelmente conhecidos. As janelas que nos espiavam certamente sabiam que algo estava ali, latente e inquietante, talvez aquele convite sagrado e raro que o destino costuma nos dar quando não estamos nem vestidos para isso. E nós, eu nos pés descalços e ele nos shorts rasgados, fingidos de que seguíamos a vida um sem o outro, realmente o fizemos.


Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia e, quando ninguém está olhando, escreve e compartilha seus questionamentos e descobertas na página @fazerafetar.


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