EQUIPAMENTOS DE PROJEÇÃO INDIVIDUAL

Se partirmos da ideia de que todo trabalho artístico é resíduo, cinzas de onde antes havia uma fogueira, alimentada pelo desejo – como dito por Ives Klein. – ao analisar não só a produção, mas também a biografia de Francisco Brandão, pergunto-me: pode um trabalho ser o prenúncio do fogo?

Francisco iniciou sua trajetória como artista visual ao criar uma espécie de tapete com 20 mil penas brancas em gesso, no calçadão da Rua Halfeld, no centro de Juiz de Fora, no ano de 2016. Sem saber, nessa instalação performática, Ex-Votos (2016), o artista para além de  anunciar os elementos que hoje constituem sua poética, talvez pressentisse como os atravessamentos de sua vida pessoal, continuariam a alimentar a sua pesquisa.

O ex-voto é uma tradição milenar de materialização de partes do corpo em busca de graça. No catolicismo, é dado ao seu santo de devoção em agradecimento de uma promessa. Trata-se de uma expressão moderna que relaciona o frágil mundo dos homens com o inexorável mundo dos deuses. E, para o artista, constituiu um elo entre ele e outrem, entre vida e morte e que hoje, germinam por replicações em sua produção.

Como vetores que inoculam em nós seus anseios, sua obra nos emociona e sabendo que emocionar-se significa sentir o impessoal que está em nós[1], observamos certa elegância em seus objetos, que manipulam algo que é caro a quase todos: relações maternais. Poucos meses depois do evento citado acima, o artista teve que lidar com o falecimento abrupto da mãe. Assim como posto por Freud, o processo de luto é, para o indivíduo, um processo de reconstrução daquilo que ele perdera. Logo, muitas de suas criações se fazem totens através dos quais ele sublima sua dor e redescobre novas realidades em objetos cotidianos impregnados de memórias.

Atualmente está em fase de conclusão de sua pesquisa de mestrado em Poéticas Visuais pela UFJF, e nela, ele cunha o termo Metodologia Viral e o adota não só em seu processo criativo e de pesquisa mas como uma ética de vida. Em suas palavras, “suas práticas proliferam cotidianamente cepas virais de afetos dos sujeitos marginais, enquanto produzem um corpo a corpo entre símbolos torcidos em objetos que já não aguentam a erosão por sua tradição simbólica”. Como artista, se vê como um intruso em outros campos, uma espécie de parasita que segundo o próprio ponto de vista, mostra o que pode ser feito com aquilo que lhe é dado – uma ação não só estética, mas sobretudo, política que se realiza por meio da manipulação de signos.

A instalação Ex-Votos, era também um equipamento relacional que ao encontrar os habitantes, os convidava a recolher algumas penas e as levar consigo – deixando-se contaminar pelo encontro de existências que, aparentemente díspares, convivem no mesmo espaço[2]. E esse foi o primeiro momento em que o artista disseminou cepas seus afetos através de sua produção. Ainda que ele só viesse a perceber, na semana seguinte, que convivia com o vírus a alguns meses, enquanto ainda tentava compreender as reverberações de seu projeto, que esteve envolto na agitação dos sucessos, da imprevisibilidade e dos movimentos da mídia, da prefeitura e da polícia da cidade.

A princípio, Francisco pretendia dispor as penas pela rua sozinho, quase como se cumprisse uma penitência. Entretanto, em determinado momento precisou reconhecer que não possuía capacidade física ou tempo hábil para essa realização. A impossibilidade de concluir individualmente o trabalho, o fez recorrer a ajuda dos amigos que o acompanhavam e dos moradores de rua que por ali transitavam curiosos. Segue permitindo-se ser “ajudado” por outros artistas e pensadores como David Wojnarowicz, Caio Fernando Abreu, Zoe Leonard, Felix Gonzalez-Torres, Giorgio Agamben, Audre Lorde e Pedro Lamebel  que o contaminam por ideias “subterrâneas” e partes delas compõem o seu universo Queer.

Nesses diálogos estabelecidos pelo artista, talvez o mais eloquente deles seja com  José Leonilson que foi um artista visual com uma trajetória breve, encurtada pelo HIV. Sua obra é majoritariamente autobiográfica e ao descobrir que vivia com o vírus em 1991, sua produção volta-se para o corpo do artista e aproxima-se dos trabalhos de Louise Bourgeois, Eva Hesse, Lygia Clark e Helio Oiticica.[3]

Após ver um documentário intitulado A Paixão de JL (2014) em que Leonilson relatava um sonho que teve, no qual havia uma porta, com muitos trincos aos quais ele trancava sistematicamente, para proteger-se de um ser livre – a quem definiu como um “Pan” – que tentava aproximar-se dele, Francisco recria essa porta em homenagem ao artista e para tal, utiliza a porta do banheiro masculino de um antigo hotel do centro de Juiz de Fora. De origem grega, a palavra Pan traz consigo a ideia de “todo, por inteiro”[4] e assim, a articulação das ideias dos dois artistas, tenciona questões sobre a forma com que acontecem as relações de afeto entre homens gays.

A Metodologia Viral é também uma metodologia erótica e, frequentemente, Francisco reencena em seus objetos a possibilidade da penetração, explicitando relações entre o prazer e a dor. Logo, questiona também como a sociedade estabeleceu paradigmas capazes de patologizar quaisquer ações eróticas que fossem improdutivas para o sistema. Partindo então da ideia de uma mão masturbadora como a mesma mão que trabalha e, em um novo diálogo, com o filósofo Paul Preciado, o artista constrói dildos[5] que nem sempre se apresentam de forma explícita, porém, sempre colocam em contraste mais que o prazer e a dor, mas noções de docilidade e violência, e relativas à construção da sexualidade desde a infância.

Em sua obra póstuma, Étant Donnés[6] que foi revelada ao público em 1968, Marcel Duchamp criou um diorama que não tem performance autônoma. Funciona apenas no olho de quem o vê, por um olhar voyeur, que goza ao espreitá-lo por buracos na porta da sala que o guarda. Francisco Brandão recria em sua produção esse mesmo olhar. E outros, em cada olho mágico que dispõe em sentidos múltiplos, propiciando perspectivas vertiginosas. Entretanto, nessa analogia, não penso seus objetos como o diorama Duchampiano, os vejo como a porta que nos induz a olharmos para nós mesmos; não à toa, ele batiza sua pesquisa de Cenografias do Íntimo.

Francisco estabelece fortes relações entre o sagrado e o profano que atinge de forma tão visceral nossa coletânea de verdades que chegamos a sentir suas reverberações se disseminando célula a célula em nossos corpos. Sobretudo quando lemos seus escritos no contexto pandêmico em que vivemos e encontramos palavras como cepas, replicação, contaminação, assintomático, EPI (Equipamento de Proteção Individual), período de incubação, transmissão, entre outras, que não são mais exclusivas do jargão de profissionais das áreas biológicas e de saúde pois agora estão integradas em nosso cotidiano. Percebo seus trabalhos como equipamentos que não apenas nos defendem de possibilidades fracionadas mas nos projetam e passados os primeiros momentos de encantamento por seus trabalhos, nos vemos na ribalta de nossas próprias vidas, contaminados por seus afetos, dores, prazeres, pecados e beleza.

Sem título (69) – porta de madeira e olhos mágicos, 210 x 80 cm – 2020.

Sem título”, montagem digital de carimbo sobre notas vigentes de Real, 2020-21.

Série SEDE #6 (beba água pura) – Filtro de porcelana, stencil e cristal, 47 x 30 cm, 2021.


[1]  AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. e apres. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.

[2] MGTV 1ª Edição – Zona da Mata | Estudante de Artes espalha penas de gesso pelo Calçadão em Juiz de Fora

[3] LEONILSON . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8742/leonilson>. Acesso em: 04 de Jun. 2021. Verbete da Enciclopédia.

[4]  Dicionário Online de Português. https://www.dicio.com.br/pan/ Acesso em 10/06/2021 às 10h57min. 

[5] Segundo Paul Preciado: “O dildo coloca a questão da morte, da simulação e da falsidade do sexo. Inversamente, obrigada a interrogar-se sobre a vida, a verdade e a subjetividade do sexo […] Com relação ao corpo, o dildo assume o papel de um limite em movimento. Como significação descontextualizada, como citação subversiva, o dildo remete à impossibilidade de delimitar um contexto. Em primeiro lugar, coloca em questão a ideia segundo a qual o corpo masculono é o contexto natural da prótese do pênis. Depois, e de um modo mais drástico, ameaça a suposição segundo a qual o corpo orgânico é o contexto próprio da sexualidade.”

[6]  https://en.wikipedia.org/wiki/%C3%89tant_donn%C3%A9s


Ada Medeiros é Bacharela em Artes e Design pela UFJF e está se especializando em Artes Visuais na mesma instituição. Possui pesquisa com experiências em desenho, pintura e fotografia, na qual investiga questões acerca de gênero e sexualidade, além de tratar da efemeridade da vida, da fragilidade e da fragmentação do ser. Instagram




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