ENSAIO SOBRE O FUTURO DA CIDADE

Entre o homem e a mulher, há o amor.
Entre o homem e o amor, há um mundo.
Entre o homem e o mundo, há o muro.

Jacques Lacan

O psicanalista Gabriel Tupinambá faz uma observação clínica que conduz a uma intuição oportuna sobre o sofrimento contemporâneo: enquanto na experiência clínica narrada por Freud os pacientes se viam deslocados quando interpelados sobre o próprio passado – este sempre obscuro e traumático -, atualmente, deitados no divã, as pessoas tomariam o próprio passado como algo interpretado, transparente e inequívoco. O que acontece é que, em vez de o desconforto aparecer nas memórias sobre o passado, as principais angústias e incertezas apareceriam nas questões relativas ao futuro. Falar sobre as expectativas tornou-se algo pavoroso, indesejável, cheio de defesas – aliás, uma boa demonstração disso são as patologias do tempo como ansiedade e depressão, tão características dos tempos atuais. Da mesma forma, falar da sexualidade cedeu o lugar privilegiado sobre aquilo que não se pode falar com segurança para o aspecto econômico: paradoxalmente, embora rodeados de propagandas e anúncios sobre dinheiro, o que realmente fazemos com nosso dinheiro no mercado capitalista virou assunto da ordem do tabu.

Penso que esse tipo de intuição (“antecipar o porvir virou problemático”) pode ser muito útil para descrever uma certa resistência de figurabilidade que podemos estar enfrentando. Parece não ser de bom grado conjecturar saídas, planejar ocupações, materializar condições insurgentes, ou até mesmo ousar a reconfiguração dos valores indexados nas estruturas simbólicas da cidade, a fim de ensaiar um futuro retorno ao convívio social. Tudo isso nos coloca numa posição ameaçada, já que o próprio contexto (econômico, cultural, sanitário) busca reprimir as imaginações. Se não mais o passado, e sim o futuro que trata de nos apresentar a castração, não é mero sintoma individual que permeia a aliança entre desejo e expectativa, obstruindo suas montagens possíveis, mas algo de um traumático da civilização que retorna. Para citar uma frase (de mau gosto) frequentemente repetida por Slavoj Zizek: é mais provável que a luz do fim do túnel não seja uma saída, mas um outro trem vindo em nossa direção.

Já comentei em outro momento sobre a questão ontológica da presença urbana dos manifestantes brasileiros[1], que ultimamente têm reunido esforços políticos e sociais em favor da deposição do presente governo e da contenção de suas práticas anticivilizatórias. Mas preferi, neste ensaio, deslocar um pouco do instante metafísico para lançar um olhar sobre o espaço concreto em que esses acontecimentos se dão: a cidade. É importante lembrar que a cidade é um sistema de representações que serve como condição material para o reconhecimento de determinadas formas de vida. A cidade faz reconhecer os esquemas de habitação na linguagem, as formas de trabalho e, finalmente, seus modos de desejar[2]. É nessa articulação que a cidade é uma extensão de nós mesmos, ao mesmo tempo em que é a metáfora que condensa nosso -estar social. Sendo assim, me parece estranhamente próxima a discussão a respeito do que esse lugar pode frente à estação nebulosa que vivemos e que não teme dizer seu nome. Afinal, sem querer repetir o óbvio, a pandemia instaurou um estado politicamente absorto com relação às topologias que norteiam o espaço comum. Confinados em perene virtualização, as imagens urbanas desapareceram de nossa imaginação, cedendo a pressões que se tipificam em demandas de trabalho, ausência de tempo e cansaço eximidas da espacialidade dos possíveis – pois agora os espaços parecem impenetráveis e contaminadores, e manter uma relação com eles só é permitido através da negociação com a própria culpa.

Podemos afirmar que a dificuldade de pensar o futuro está ajambrada com o problema de esvaziamento da significação de que as formas urbanas parecem sofrer, pois justamente nesse tempo em que as manifestações de rua parecem imprescindíveis para o enfrentamento daquilo que nos isola uns dos outros, uma força que vem da antecipação nos desestabiliza. É como se a própria cidade estivesse diferente. Há de reconhecer essa estranheza, mas não do fato de que a cidade esteja diferente, no sentido de produzindo ícones e símbolos inéditos sob os quais podemos nos apoiar para revivescer o apelo transformador – e é nesse ponto que eu queria chegar: este símbolo está ausente. Talvez falte uma figura que ilustre o levante popular em torno de uma causa, que faça uma interrupção revolucionária do estado de coisas. Recorrendo a uma imagem bastante admirada por Walter Benjamin do cenário parisiense do século XIX, falta-nos algo como as barricadas, no seu sentido mais metafórico, como um “lugar atraente”, que materialize a insurreição e a revolta dos oprimidos. Como alude Michael Lowy a respeito do significado das barricadas: “a barricada é uma espécie de lugar utópico que antecipa as relações sociais futuras”[3]. Ou seja, os efeitos da barricada não são meramente materiais. São efeitos alusivos, antecipatórios.

Sendo assim, o que realmente quero esboçar nesse texto é essa tentativa meio hegeliana de procurar nessa ausência algo que libere nossa possibilidade de ação. Pode-se dizer que a impotência que sentimos, não deve ser percebido somente como aquilo que nos afasta de agir a realidade em-si, mas como algo que, visto em sua maximização, toca o polo do que a realidade verdadeiramente é – algo impenetrável. Para dizer de maneira psicanalítica, ali onde pensamos obter o “não” da castração é onde se encontra a abertura para a constituição do nosso desejo, a superação da impossibilidade. No nosso problema, se trata de recolocar a cidade enquanto lugar propício de ocupação e arranjo simbólico, apesar das limitações e resistências impostas pela pandemia. Fazê-la abrir nossa imaginação para produzir novos arranjos simbólicos. Para induzir a essa ousada ambição, gostaria de indicar uma lógica formulada por Lacan.

Lacan cunha uma frase para descrever o ato amoroso: “amar é dar o que não se tem a quem não o pediu”. Essa frase é melhor compreendida se tomada como homóloga à estrutura da demanda do Outro, que diz “peço que recuses o que te ofereço pois não é isso”. Ou seja, o amor é aquilo que aparece como desencaixe no dar e receber, aceitar e recusar. A demanda (de amor) do sujeito e do Outro estão em eterno descompasso, criando uma espécie de gap no qual o sujeito pode doar algo singular. Retomando nossa questão: será se é nesse gap entre a cidade não-imaginada e a ausência de futuro que podemos enfim introduzir uma fantasia que realize simbolicamente nossa relação impotente, de que nós somos a própria barricada (?).


[1] Ler mais em “A política dos espectros”, na edição n. 94 da Revista Trama.

[2] A noção de “forma de vida” pode ser melhor estudada a partir dos trabalhos desenvolvidos no Latesfip (USP).

[3] LOWY, Michael. A revolução é o freio de emergência: ensaios sobre Walter Benjamin, 2019.


Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.


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