O QUE QUEREMOS GUARDAR: FOTOGRAFIAS OU MEMÓRIAS?

Como nasci no mês de junho, quase todas as minhas comemorações de aniversário tinham os mesmos temas: Festa Junina e Copa do Mundo. Por sorte, o torneio de Futebol só acontece a cada quatro anos, porque sempre fui apaixonado pelas festividades do meio do ano. Canjica, vaca atolada, camisa xadrez, bota, fogueira, quadrilha, correio elegante, bandeirinhas coloridas: tudo isso sempre fez parte da minha infância e me traz lembranças muito felizes. Talvez minhas memórias juninas mais antigas sejam do meu aniversário de quatro anos, quando minha mãe, sempre muito carinhosa e cuidadosa, teve uma ideia de um bolo de aniversário fora do padrão. Quatro pedaços de rocambole confeitados com chocolate e montados em formato de xis, com alguns retalhos de papéis amarelos e vermelhos no meio, formavam uma fogueira.

Naquela noite, durante toda a festa de aniversário, apenas uma fotografia foi feita. Uma única fotografia que mostra o bolo em forma de fogueira sobre a mesa e um grupo de crianças posando ao fundo. Sempre que eu resolvia abrir a gaveta cheia de coisas de recordar, que ficava no quarto dos meus pais, e passava a tarde vasculhando aqueles documentos, fazia questão de olhar mais uma vez para aquela foto da comemoração de meus quatro anos de idade. Olhar aquela imagem me fazia lembrar de muitos detalhes daquele dia. Das roupas que alguns convidados estavam usando, do frio que fazia naquela noite, dos doces que ajudei minha mãe a fazer durante a tarde, de como tudo ficou escuro quando as luzes foram apagadas na “hora do parabéns” e até do gosto do doce de leite que recheava aquele bolo de aniversário diferente. Uma foto. Uma única imagem me fez, e ainda me faz voltar no tempo ativando as memórias que guardei daquele dia.

Hoje, tenho dois sobrinhos. A primeira já completou seus quatro anos, e a comemoração foi com uma festinha simples, pequena, só para a família e alguns poucos convidados. Muito parecida com a minha festa de quatro anos, inclusive com as mesmas comidas – já que ela também nasceu no mês de junho. A maior diferença entre minha festa de quatro anos e a festa de minha sobrinha é a forma como cada uma foi registrada. No lugar do fotógrafo amador com uma câmera analógica, dezenas de convidados empunhando seus smartphones com câmeras de vários megapixels. Ao invés do filme fotográfico sendo economizado para registrar outros eventos, micro cartões de memória com alta capacidade de armazenamento. A materialidade do álbum de família ou das fotos impressas guardadas em uma caixa de sapatos foi substituída pelos arquivos digitais armazenados em redes sociais ou em uma nuvem com capacidade infinita.

Pensar sobre como será constituída a relação de minha sobrinha com as imagens da sua infância e se essa relação será tão importante no desenvolvimento de suas memórias, como foi para mim, me faz levantar questões que não passam pelo saudosismo. O que será feito desse enorme montante de imagens produzidas e armazenadas digitalmente? Qual a duração e o destino destes arquivos?

Em 2015, Linda Henkel, que é especialista em psicologia cognitiva da Universidade de Fairfield, nos Estados Unidos, publicou um artigo em que defende que a produção excessiva de fotografias está afetando negativamente nossa capacidade de armazenar lembranças. A pesquisadora explica que, quando as imagens eram registradas de forma analógica, havia uma preocupação em limitar a quantidade de cliques, por isso as pessoas registravam apenas os momentos mais importantes, aqueles que julgavam dignos de serem lembrados. Mas atualmente, como o avanço tecnológico facilitou o registro e o armazenamento de imagens, essas cenas especiais dividem espaço com fotografias banais como selfies, prints de tela, nosso almoço de ontem… e formam um amontoado de lembranças de difícil acesso. É aí que está o perigo: segundo Henkel, nossas memórias duradoras não se formam quando registramos uma imagem, mas sim através do ato de revisitar essa fotografia.

Sinto que talvez nossa memória esteja ficando cada vez mais destreinada ou preguiçosa. Não nos esforçamos mais para lembrar um número de telefone: isso está ao alcance das mãos, registrado em uma memória artificial. Assim como as fotos do aniversário da minha sobrinha, que também estão lá, disponíveis para quando ela quiser rever. Uma memória digital com capacidade inesgotável, guardando cada momento do que aconteceu naquele dia. Para alguns, essa memória infinita pode parecer uma bênção; mas para mim não passa de uma maldição.

Em 1944, Jorge Luís Borges escreveu um conto sobre um homem que podia se lembrar de cada segundo de sua vida. Irineo Funes, o memorioso, era portador de uma doença que o impedia de esquecer qualquer informação, mesmo as mais banais. Entretanto, por tudo lembrar, não era capaz de pensar. A história de Funes me faz pensar que o nosso medo do esquecimento nos faz querer guardar muito mais informações que do que nossa memória não-artificial é capaz de suportar. Por isso transferimos para o smartphone, para computador, ou para a nuvem, a função de guardar nossas lembranças, e isso nos transforma em paródias de Irineo. O que queremos guardar: fotografias ou memórias?


REFERÊNCIAS:

HENKEL, Linda. Point-and-shoot memories: the influence of taking photos on memory for a museum tour. Psicological Science (Revista online), 5 dez. 2013.

BORGES, Jorge Luis. “Funes, o memorioso”. In: Ficções. Porto Alegre: Editora Globo, 1970.


Daniel Chico é fotógrafo analógico e estuda processos de impressão alternativos. Graduado em Comunicação Social, especialista em Arte Contemporânea e mestre em Artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais, sua pesquisa transita por temas como fotografia e memória, recuperação de arquivos fotográficos e arte contemporânea.


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