Todo processo nasce de inquietações e todas as inquietações geram perguntas. Tentar responder a essas perguntas é o que nos mantém em criação.
O processo de criação do experimento virtual Histórias Irrecusáveis, da Companhia Sala de Giz, inicia-se com as angústias e incertezas de se produzir arte durante a pandemia. No princípio de todo processo pandêmico, eu fui um dos artistas relutantes a me adequar a esse meio virtual; talvez por pensar que tudo passaria rápido. Mas o fato era que todos os meus estudos da presença, trabalhados por anos na Sala de Giz, estavam diante de um desafio. E esse lugar novo me gerou as primeiras perguntas: Seria possível criar presença em um ambiente virtual? Existe “teatro virtual”?
Essas duas perguntas permearam meus pensamentos durante todo o ano de 2020, juntamente com o desejo de produzir e com os receios sobre como fazer teatro sem a presença do público. Os primeiros meses foram de reclusão: me fechei em uma caixinha e tentava assimilar o golpe. Tinha acabado de abrir um novo espaço cultural e era preciso fechá-lo. Digo que esse momento foi um dos mais obscuros da pandemia; cheio de medo, incerteza, impotência, dentre outros sentimentos negativos que afetam nosso cotidiano.
O contato com outros artistas e um olhar atento aos que considero mestres, foram esses os elementos que me fizeram desejar sair desse buraco negro que a pandemia nos colocou. O primeiro projeto que teve influência sobre Histórias Irrecusáveis é o Princípio A(fe)tivo, em que reunimos artistas e mestres que admiramos e os convidamos a responder a seguinte pergunta: “Que tipo de cura eu posso produzir?”. Ver esses artistas experimentando e produzindo materiais para o projeto contribuiu para uma nova fase de perguntas em meu processo de criação: como fazer teatro utilizando-me apenas da “presença” proporcionada pelos meios virtuais? Quais as características desses meios e como eles podem contribuir para a fruição da minha obra de arte?
Após receber inúmeras curas (que ainda estão disponíveis no instagram da Sala de Giz), entrei na fase de assistir teatro online. Posso citar duas peças que assisti e que me motivaram a continuar minha investigação sobre a criação nesses meios virtuais. A primeira delas é 12 Pessoas com Raiva, do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação; a outra, Dois Nós na Noite, da Santa Corja. Dentro de tudo que assisti em 2020, essas duas experimentações teatrais online me fizeram ter a vontade de criar a minha própria experimentação. O que antes era uma fase de reclusão se tornou uma fase de provocação, em que constantemente eu me perguntava: O que EU posso criar?
No final de 2020, duas coisas aconteceram: a primeira delas foi um curso experimental de teatro ministrado através do zoom pela Sala de Giz, em que nós provocamos alguns alunos a criarem uma cena virtual. A segunda foi a Lei Aldir Blanc: finalmente teríamos verba para criar, e isso me deu a tranquilidade necessária para mergulhar em novos projetos e acabar com a sensação de impotência. Com LAB, veio outra questão: Quais projetos produzir?
O primeiro projeto que participei da LAB foi a vídeo-dança da Sala de Giz em parceria com Grupo NUN, A Cor do Ontem não é a Mesma ao Sol. O fato de estar envolvido, depois de tanto tempo recluso, em um projeto de criação, na presença de pessoas que eu admiro, foi o fôlego necessário para criar. Logo em seguida veio o 2° Festival Sala de Giz de Teatro: edição online, que aqui merece uma atenção especial.
Produzir o Festival nos colocou em contato com grupos e produções teatrais do Brasil inteiro: foram mais de 450 inscrições de todas as regiões. Tínhamos nas mãos um panorama do que estava sendo produzido no país, e olhar cada um desses projetos foi um importante recorte para nos colocar próximos do que viria a ser o Histórias Irrecusáveis. Dentre esses muitos projetos, existia um que nos aguçou a curiosidade: uma experimentação virtual que usava whatsapp, instagram, spotify, youtube e ligação telefônica. Tudo que Coube numa VHS, do Grupo Magiluth (PE), foi a grande inspiração para a nossa criação. A experimentação fugia do caminho tradicional ao colocar o público como agente da obra. O espetáculo mexeu tanto com a gente que, um mês depois, estávamos fazendo uma oficina ministrada pelo grupo através do SESC (PE). Histórias Irrecusáveis nasceu nessa oficina, quando fomos provocados por Giordano Castro, diretor e dramaturgo do Magiluth, a criar algo utilizando os meios tecnológicos e tendo como base o trabalho desenvolvido por eles em Tudo que Coube numa VHS. Talvez, se eu começasse meu texto por aqui, diria que nossa experimentação virtual surgiu desse encontro, onde eu e Felipe Moratori nos debruçamos durante uma semana para levantarmos nossas duas histórias. Mas se eu começasse por aqui, eu não estaria sendo justo com meus outros processos; acredito que, quando criamos uma obra, estamos condensando nela todas as inquietações, todas as questões e todos os desejos pulsantes em nossa vida. Histórias Irrecusáveis é um experimento teatral online, fruto de uma impossibilidade de fazer teatro nos moldes tradicionais, do desejo de se conectar novamente com o público e de bons encontros.
As Histórias Irrecusáveis Todos os Dias são Hoje”, de Bruno Quiossa, e “Eu Vou Ser Velho Um Dia”, de Felipe Moratori, serão apresentadas de forma online nos dias 16, 17 e 18 de Julho de 2021, em diversos horários. Para assistir, basta adquirir seu ingresso nos links acima.
Bruno Quiossa é ator, diretor e gestor da Sala de Giz. Mestre em Artes Cênicas, investiga a criação teatral a partir de notícias.