O DEVIR CAMINHARÁ NOSSOS PÉS

As montanhas espichavam meu corpo e me achatavam em sequência. Atravessei o mar mineiro com os pés descalços desbravando o caminho. Primeiro o esquerdo, depois o direito. Um imitando nuvem, o outro conversando com as raízes. Fui: o capim me fazendo carinho, os grilos me embalando em cantoria durante a viagem. Não tive ajuda de mapa para ir ao meu destino, nunca soube ler as linhas geográficas. Éramos eu, a roupa do corpo, o chapéu e as solas sujas de terra. Quem me encontrou pelos pastos, me sugeriu seguir para uma direção só: em frente, menina, e a todo momento você saberá que chegou.

Parei de contar as noites porque preferi contar as estrelas e me cabem poucos números nos bolsos. Coisa que na cidade a gente não ouve, o silêncio do breu, no caminho me invadiu numa saudade que eu sequer sabia que tinha. Sempre fora buzina, ambulância e toda as outras invenções geniais que tivemos. Quando eu morava no apartamento do meu pai, bem perto do centro, as tantas camadas de concreto me separando do céu me impediam de olhar para cima. Então eu olhava para a frente, mirava a porta e depois o ônibus e depois a mesa de trabalho e fuzilava o chão enquanto voltava, porque se o pescoço tentasse encontrar a lua, os prédios irreversivelmente me diminuiriam sem a compaixão das montanhas.

Os movimentos repetitivos no escritório arranhavam meus braços e ia escorrendo pelo ralo do banheiro a vontade de abraçar o mundo. Na beirada da semana é que eu mais sentia medo de morrer porque teria passado os últimos dias da minha vida trabalhando sem ser visitada por um sorriso. Na sexta à noite, com a madrugada de cúmplice do temor, fugi. Não levei nada. Corri vestida de aventura e sem uma moeda nas mãos. Primeiro peguei a avenida, depois voei rasante no acostamento da rodovia e quando amanheceu, adentrei o mato.

E enquanto te escrevo, Catarina, percebo a pele beijando o papel e reconhecendo a raridade do encontro. Será que carta assim ainda desliza para dentro da caixa de correio daí? Me disseram que valeria a pena tentar e eu não tinha muita tinta de caneta a perder. Eu cheguei, meu amor. Estive chegando em cada pisada torta nas calçadas, nos saltos nas campinas, nas mãos agarrando as árvores para subir e imergir da floresta. A cidade aqui é vila, tudo cabe na palma da mão. As pessoas inventaram a comunidade, as ruas têm nome de mulheres e os remédios estão plantados na praça — até os animais podem se servir quando quiserem. O rio aqui do lado estava secando quando começaram a cuidar e agora, apesar de riacho, soa e flui alegre.

Dona Maria me disse que as palavras poderiam enfiar o pé na fresta do tempo e te comunicar notícias daqui. Espero que você me leia oferecendo sorriso porque é assim que te escrevo. Acreditamos que poderia existir terra para pisar sem medo de cair morta, Catarina, e eu descobri o endereço. As pessoas me olham nos olhos e o reconhecimento chega antes da mensagem. Não que seja perfeito, nisso estávamos erradas, mas aqui assumimos a imperfeição enquanto bandeira. Flutua lá em cima, toma chuva gelada e faz ventar na direção a seguirmos. Em frente, disse o moço na viagem. Meu amor, tudo que você encontrar de semente por aí há de se plantar para germinar este território futuro. Quando o corpo perder o jeito de esperançar, lembre das nossas apostas nas cartas e nas sabedorias marginais e nas hortas. Faça da teimosia uma oração e o devir caminhará nossos pés. Venha me visitar, sim?


Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia e, quando ninguém está olhando, escreve e compartilha seus questionamentos e descobertas na página @fazerafetar.


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