A HORA DA BRINCADEIRA NO JARDIM II

“A hora da brincadeira no Jardim II” é um experimento de ilustração tradicional/registro em técnica mista das minhas experiências infantis (as chamadas “memórias visuais”) no espaço do caderno de artista, aliado ao estudo da inclusão de deficientes visuais no consumo e ensino das Artes Visuais.

Este trabalho surgiu em dois âmbitos de pesquisa: o estudo universitário para a inclusão de deficientes visuais em espaços de arte, por meio da produção de audioguias feitos de acordo com a estrutura do AEB (Art Education for the Blind), e uma pesquisa artística pessoal na construção (ou aqui melhor dizendo, reconstrução) do que eu como artista chamo de “composição em sketch duplo”. Ou seja, ao invés de criar desenhos em apenas uma folha do sketchbook, explorando as particularidades do papel levemente encerado (dentre outras) do caderno Moleskine com diversos materiais, técnicas e texturas visuais, estes desenhos são construídos na extensão das páginas que são visíveis quando se abre o caderno.

Memórias visuais é uma forma de memória que reúne várias sensações quando temos uma experiência visual. O que lembramos pode ser um objeto ou uma vivência e não consiste apenas da visão. Quando relembramos de uma vivência, lembro não do fato em si, e sim das sensações que a permeiam. Só conseguimos criar uma memória visual a partir da referência que temos. Cada um tem vivências personalizadas e próprias.

No caso da deficiência visual, a formação da memória visual se dá apenas quando o indivíduo nasce com o sentido da visão, pois é como uma pessoa guarda uma memória visual. Portanto, quem guarda memórias visuais, consegue se lembrar das imagens, luzes e cores que conheceu. Já quem nasce sem a capacidade da visão, porém, jamais pode formar uma memória visual, pois não possui lembranças visuais.

A memória visual que decidi retratar se passa por volta do ano de 2002, quando eu estava no Jardim II. Estudava em uma pequena escola em Campinas-SP, chamada Colégio Básico. Meu uniforme era uma camiseta amarela clara com bordado azul marinho. Meu cabelo loiro avermelhado (que se tornou mais tarde um castanho claro) era um corte chanel e minha mãe prendia ele em pequenas maria-chiquinhas presas com pequenas presilhas do tipo piranhas. A que eu mais lembro era um par de piranhas amarelas com desenhos do personagem Piu-piu.

Nessa escola, a hora das brincadeiras na brinquedoteca eram as minhas favoritas. Como uma criança que amava brincar sozinha, havia muitas coisas legais lá. Lembro que esse espaço era localizado em um grande salão com pé-direito alto, dividido com divisórias de plástico (do tipo de escritório) e a porta desse espaço com divisórias era uma porta de correr. A luz do salão vinha de uma janela e não de lâmpadas.

Dentro desse espaço havia estantes de metal escolares cheias de gibis, revistas e livros infantis, mesinhas com cadeiras infantis, caixas com muitos brinquedos e jogos, misturados com teclados de computador, espátulas de cozinha e frigideiras sem uso. Além disso, lembro que havia uma arara cheia de fantasias. A minha favorita era uma fantasia da Power Ranger amarela, a qual era muito disputada pelas crianças (principalmente, pelas meninas), pois ela era o personagem mais “dahora” da série.

Decidi retratar, neste desenho, uma brincadeira muito memorável que eu tive. Nesse dia (lembro que era uma aula e não um recreio), peguei de uma das caixas de brinquedo uma frigideira, uma espátula e umas letras de EVA coloridas, e comecei a fingir que estava fritando pastel com as letras de brinquedo e lembro que comecei a imaginar a sentir o cheiro e o gosto de pastel de queijo na boca.

Nessa aula, eu lembro que os alunos podiam trazer brinquedos de casa. Eu não sei se eu tinha levado algo naquele dia, mas lembro que uma menina trouxe essa incrível e mega realista (para mim de 4 anos de idade) miniatura do restaurante do McDonald’s. Anos mais tarde, descobri na internet do que se tratava aquele brinquedo, pois nunca havia achado ele para comprar em uma loja. Lembro que vi as peças se mexendo e parecia que eu vi o sorvete, o refrigerante e a batata frita de verdade, em todas as suas texturas, só que em tamanho miniatura, assim como também o gosto destes três. Depois daquilo, queria muito comprar esse brinquedo, pois imaginei que se eu tivesse ele, eu conseguiria fazer a batata frita e o sorvete do McDonald’s também. 

A ilustração retrata todos os aspectos desta história, definindo esteticamente os elementos em memórias factuais (ou seja, o que era real) e impressões (aquilo que é imaginado, sonhado). As memórias factuais estão demarcadas com uma mescla de cores suaves e levemente pastéis e/ou cores mais cinzentas feitas com canetinhas hidrográficas, canetinha aquarelável e lápis de cor contornadas com caneta de ponta fina na cor preta.

Já os elementos que correspondem às impressões estão demarcados com estilos de pintura com cores mais vibrantes e sem contornos gráficos, feitos com tinta guache, tinta tecido e tinta PVC, com alguns detalhes em canetinha e lápis grafite, muito similar a pintura de pôsteres comerciais de revistas vintage dos anos 1940 e 1950 ou a de cenas do desenho animado Bob Esponja quando se queria ampliar a realidade e os detalhes de algum objeto, para criar um efeito dramático e/ou cômico na cena.

Estas duas categorias de elementos estão dispostos em dois quadrantes que se conectam por elementos gráficos diversos, muito influenciados por desenhos animados e mangás, tais como os emojis de corações que envolvem a menina, que olha com surpresa e encanto a página ao lado, onde essa mesma composição de emojis se repete, e como os elementos cômicos de expressões faciais mais exageradas, brilhos acentuados nos olhos e corado no rosto.

“A hora da brincadeira no Jardim II” é resultado de uma pesquisa de memórias autobiográficas, uma remontagem de uma autoconsciência infantil que um dia foi minha e que agora parece um sonho distante, por meio do uso de referências de imagens retiradas da internet e pela recriação visual de coisas que ainda me lembro, conectadas por técnicas de pintura, calculadas para gerar efeitos e texturas visuais. Um trabalho terapêutico e evasivo que me reconectou a uma época de imenso saudosismo, à Aninha criança que em algum lugar ainda vive em mim, mesmo em meio a um caos de ataques de pânico frequentes, transtorno de ansiedade generalizada e depressão, ao mesmo tempo que serviu de ferramenta para ampliar o acesso de deficientes visuais ao consumo de espaços de arte pela imersão auditiva.

A Hora da Brincadeira no Jardim II
2020
Composição em sketch duplo com tinta guache, canetinha hidrográfica, canetinha aquarelável, aquarela, tinta PVC, tinta tecido e caneta de ponta fina sobre papel Moleskine.
18 x 14 cm

Aninha Pinke é artista visual, graduanda do Bacharelado em Artes Visuais pela PUC-Campinas. Sua poética retrata, à sua maneira, o feminino, a introspecção, o emocionalmente denso, o subjetivo e o saudosismo, em ilustrações em técnica mista, principalmente por meio de explorações no suporte do caderno de artista/sketchbook, com memórias pessoais, testes com maratonas de desenhos online (como o Inktober e o #foodpaintchallenge) e fanarts criadas a partir de imagens de grupos femininos de K-Pop.


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