Kambili é uma jovem da classe média alta de Enugu, cidade da Nigéria. Ela frequenta, juntamente com seu irmão Jaja, uma das escolas católicas da cidade. Seu pai, Eugene, se tornou cristão, muito por conta do seu contato com um dos discursos coloniais que chegaram à região onde ele morava, no interior do país. Beatrice, a mãe da família, é uma mulher sem voz. Por vezes, Kambili e Jaja acompanham os “corretivos” em socos e pancadas que Eugene a confere, alegando que esse tipo de atitude é para que a esposa tenha uma vida mais regrada e obediente. O silêncio é por vezes o lugar do medo, do terror e também das impossibilidades das crianças de fazerem algo contra o seu próprio pai. A vida de Kambili é tomada em rédeas curtas por Eugene, que faz análises rigorosas dos boletins da escola e também estipula tempos predeterminados para o lazer nos dias de semana.
A família possui condições muito distintas da maioria da população. Carros, casas em lugares diferentes, possibilidades de contato com o exterior através de viagens, além de outras experiências construídas e formuladas na maioria das classes médias altas de todo país são referências que fazem parte da vida deste núcleo familiar.
Kambili conhece muito pouco do lugar de origem de seus antepassados. Apesar disso, todos os anos eles costumam passar o Natal na cidade onde seu pai foi criado. Nesta data, Kambili e seu irmão possuem hora marcada para visitar o seu avô. Seu pai não gosta que eles gastem muito tempo por lá, pois Papa Nnukwu, como é chamado pelos seus netos, não foi convertido ao cristianismo e mantém em sua residência as possibilidades de vivência, sobrevivência e vida não afetadas diretamente pelos ideais coloniais; se tratando de um “verdadeiro” herege aos olhos de Eugene.
Não se pode comer e nem beber em casa de pagãos, não se pode falar em igbo, não se pode andar com quem não possui a razão e a lucidez de ser um cristão: estes são pontos defendidos pelo pai de Kambili, para que os filhos tenham uma educação à moda europeia e possam trilhar, na sua concepção, o “melhor” caminho possível. Porém, esta agressão simbólica passa a ser questionada a partir do contato de Kambili com sua tia Ifeoma, irmã de seu pai.
Apesar de ter tido pouquíssimo contato com a tia ao longo de sua vida, Kambili descobre as novidades de um mundo diferente quando ela aparece em sua casa, nos dias de Natal. Dada vez, Ifeoma convida os sobrinhos para passar dias em sua residência, em outra cidade do país, onde irão vivenciar outras experiências. A tia é professora e sempre desempenhou uma educação com seus próprios filhos por um viés diferente daquela trabalhada pelo seu irmão. Ifeoma relativiza e critica muitas das vezes as referências dos jeitos, trejeitos e ideias do Norte.
Serão nesses dias em visita a casa de Tia Ifeoma que Kambili muda e percebe a vida de forma completamente diferente daquela imposta pelo seu pai. A personagem passa a apontar o remo para outra direção, questionando as atitudes do chefe da família, dando mais atenção à relação com seu avô e demonstrando que é possível aprender e transformar o mundo a partir dos seus novos lugares de conhecimento.
Os indivíduos – e também seus grupos – fazem parte da produção e da contribuição de um lugar complexo, por onde são vetores de troca, trocas em si, e intercâmbios inseridos em um espaço-tempo determinado. Para isso, faremos uma navegação à literatura e teremos as palavras de Kambili como instrumento que nos ajudarão a perceber como podemos encarar outras possibilidades de construção do conhecimento e a complexidade da realidade retratada nas páginas de um romance.
Chimamanda Ngoze Adichie nos descortina em “Hibisco Roxo” a trajetória de Kambili, enfatizando que estamos diante de uma história importante a ser contada. A partir das experiências da jovem personagem, a autora nos apresenta o seu próprio mundo e também os lugares contemporâneos das relações sociais e de poder da Nigéria atual. Chimamanda constrói o texto de forma orgânica, sem fazer muitas descrições e promove a quebra de barreiras importantes na formação do romance. Entretanto, tomemos aqui, para uma discussão pontual, as letras da escritora como meio que extrapolam os traços estilísticos e nos fazem perceber uma realidade até então, muitas vezes, desconhecida; principalmente no Brasil.
É aqui que a literatura, a produção do conhecimento e a análise histórica passam a caminhar de mãos dadas nesse debate. Não é de hoje que esta intersecção se insere nas áreas do conhecimento que demonstram um intercâmbio fulcral para os estudos em geral. Muito se fez e falou com relação a este espaço no mundo acadêmico. Aqueles que se dedicaram aos estudos sobre África não deixaram esta discussão passar à margem e reverberaram este ramo do conhecimento desde pelo menos os anos 1970.
No terreno dos estudos literários, a análise se construiu a partir de diversos autores que o pisaram em busca de trabalhos que traduzissem e permitissem a observação em diferentes ramos e caminhos, fazendo brotar estudos acerca das literaturas em África e da sua produção estilística.
Laura Padilha e Rita Chaves foram autoras importantes para se pensar as narrativas literárias dos países lusófonos em África. Seus trabalhos se concentram nas análises de formação dos romances e também nas perspectivas em que estes abordam e retratam os projetos nacionais, aliados a uma ideia de “nação” repensada para as possibilidades específicas das realidades dos países africanos em questão.
Outro destaque são os escritos de Ana Mafalda Leite que percebeu a peculiaridade das literaturas em África por conta da sua íntima relação com a oralidade e os aspectos da construção social, vistos nas páginas dos romances, a partir de uma dada singularidade das sociedades que os produziam. Assim, a autora nos leva a uma perspectiva única, elencando as visões de mundo originárias de um lugar onde a escrita não era um elemento importante de difusão do conhecimento. Uma literatura, por isso, com traços e com o fazer transbordar de linguagens e línguas não dantes grafadas.
Por outro viés, José Carlos Venâncio percebe a literatura angolana atrelada a sua realidade social, num sentido bastante parecido com a dialética proposta por Antonio Candido. A literatura e a sociedade, para o autor, caminham juntas, fazem perceber uma maré complexa da realidade que também se insere na escrita de cada autor e sopra, com ventos fortes, a lugares diferentes da construção do romance, onde a palavra se torna uma transformação da realidade; fazendo com que ele também esteja inserido em um espaço-tempo determinado e contenha elementos do seu meio social em sua formação.
Entretanto, para que possamos transportar Kambili e sua família para os estudos epistemológicos, podemos tentar entender este lugar de conexão por outra proposta de formulação do romance: do seu lugar na sociedade e das possibilidades de leituras que podemos fazer a partir de suas letras acerca de alguns grupos contemporâneos na Nigéria e de suas realidades. Entretanto, este lugar esteve há muito esquecido dos olhos dos intelectuais no mundo ocidental.
O que importa é aquilo que está escondido e que esteve silenciado.
Eis que se chega a outro ponto de encontro: Karen Barber nos elucida como a literacia produzida nas sociedades africanas pode ser vista como processos múltiplos de emersão de histórias, que há muito estiveram escondidas. As obras de arte, considerando a produção artística de um modo geral, possuem propriedades porosas onde se constituem em diálogo íntimo com a sociedade em que está sendo formada. É poroso, pois se acredita que há um pouco de “eu” e um pouco de “todos”. A porosidade nos faz descortinar a partir de então, sob a ótica de Barber, as possibilidades de trabalho com a obra “Hibisco Roxo” sob o prisma elucidado, “fazendo emergir histórias”.
Não é a primeira vez que o silêncio e o esquecimento acerca dos lugares e também dos grupos em África se fazem presentes. Foi nessa vertente que nos anos de 1990, Michel-Rolph Trouillot pensou a construção da história e da historiografia a partir das relações de poder e das relações sociais, partindo de exemplos das histórias dos negros na diáspora e também acerca dos grupos que compõem as sociedades africanas.
Trouillot elenca as particularidades da construção do pensamento historiográfico nas vias de silenciamento que foram dadas aos estudos acerca da história da África, lembrando-nos que a historiografia está em disputa e ela se instaurou em uma produção do conhecimento eurocêntrico e bastante marcado pelo discurso colonial, que ainda hoje impregna fortemente a maioria da produção intelectual, fazendo-se legitimar, muitas das vezes, desconsiderando outras possibilidades de “fazer” o pensar.
É nesse ponto que Boaventura de Sousa Santos faz parte desta possibilidade de diálogo e entra profundamente em nosso debate. Ao propor o olhar para as formas de pensamento pós-abissal, para que possamos enxergar outras formas de criação e formação do conhecimento, que não àqueles que estiveram atrelados aos estudos das perspectivas do Norte; Boaventura nos convida a saltar, a perceber outros espaços epistemológicos e também a dar voz e vez a outros atores socais. O autor também nos lembra como é complicado um pensamento longe das categorias, ideias e visões de mundo marcadamente eurocêntricas, que conjugaram relações políticas de dominação hegemônicas e fizeram reverberar as regras do capitalismo como um modelo-padrão europeu, em seus diversos desdobramentos pelo mundo.
É por isso que podemos tentar entender as letras de Chimamanda Adichie em “Hibisco Roxo” como possibilidades de construção e transgressão para um conhecimento diversificado, outro, alternativo – pós-abissal.
É evidente que, para este debate, houve muitas contribuições anteriores que não podem deixar de ser mencionadas. Além de Trouillot e Boaventura de Souza Santos (que são essenciais para esta perspectiva de análise), os debates permeados nos estudos desde os pensadores pan-africanistas, por exemplo, são de fundamental importância para este legado e para a abertura dos caminhos que podemos percorrer atualmente.
Assim, seguindo na linha que nos foi dada pelas ideias de Karen Barber enquanto instrumento para análise do texto de Chimamanda, adentramos a uma encruzilhada rica, fazendo diálogo com diferentes autores e autoras, como os anteriormente citados, onde podem ser ajuntadas as visões de Bell Hooks e Jean-Loup Amselle.
Por isso, também levando em consideração os autores mencionados, podemos perceber em “Hibisco Roxo” a possibilidade de “transgressão” assim como trabalhada por Hooks. Por conta de a autora vincular esta ideia à área da Educação, é notório que a questão do ensino-aprendizagem está relacionada, sobretudo, a formulação de uma nova construção do conhecimento, que a partir de “Hibisco Roxo”, está relacionada a um elemento pós-abissal, assim como considerado por Boaventura de Sousa Santos.
A transgressão vem na medida do conhecimento, da quebra dos estereótipos que possuímos sobre as Áfricas e também sobre as realidades e possibilidades de relações sociais que estão se dando na contemporaneidade nos países do continente. Além disso, a possibilidade de transgredir está no “fazer conhecimento” a partir da ciência dessa realidade, ou seja, ao tomarmos contato com o texto de Chimamanda também estamos nos conectando à dada realidade retratada a partir das construções de possibilidades de leituras, conhecimentos, culturas e sociedades diferentes; abrindo-nos um leque de novas opções e olhares.
Já a contribuição deixada por Jean-Loup Amselle para análise do romance, vem a cargo de suas leituras sobre as conexões. O autor salienta que percepções sobre as sociedades africanas ainda possuem grande dose de lentes e olhares eurocêntricos, não só por grupos exteriores, mas também pelas próprias elites locais que corroboraram e corroboram o discurso do colonizador que transborda ainda hoje na colonialidade de determinados conceitos ou ideias e nas relações sociais entre os grupos. Ainda com Amselle, podemos considerar como chave de leitura que a sua formulação sobre as possibilidades intermitentes de construção a partir das trocas e conexões nos espaços africanos sempre se deram, fazendo com que tenhamos ciência de que estes lugares sempre possuíram relações complexas de troca e possibilidades de intercâmbio até mesmo dentro do próprio continente. Conseguimos perceber isto a partir das ideias de “sociedades englobantes” e de “sociedades englobadas”, caracterizando as multiplicidades de relações existentes, tanto na construção do poder como nas interfaces sócio-econômicas e culturais.
Indo um pouco mais além, usando a chave de Karen Barber para estudo do texto de Chimamanda e a partir das possibilidades de transgressão para a construção de um conhecimento outro, atrelado a ruptura da linha abissal; podemos considerar o texto como um lugar onde enxergamos uma dada realidade na Nigéria no mundo contemporâneo. Assim, também é possível considerar Kambili, nesta leitura, como troca em si, vetor de trocas que está em um local de intercâmbios intensos, que já vieram se dando ao longo dos tempos e de que a personagem pode ser lida como um eu poroso, observável. Isto faz com que o romance possa ser visto como um objeto que pode ser utilizado para uma nova construção do conhecimento, rompendo o silêncio e transgredindo as leituras até então realizadas, fazendo emergir outras visões acerca das sociedades em África.
Tomar o texto de Chimamanda Adichie como um objeto de estudo é perceber algumas características importantes que estamos tentando desenvolver neste debate. Tomando de empréstimo o título de Achille Mbembe em seu artigo que disserta sobre as formas africanas de auto-inscrição, temos aqui a visibilidade de outra possibilidade de entender e compreender África nas suas “escritas e inscrições” .
Possibilidade esta, vista aqui como um lugar que a literatura ocupa a partir de seus reflexos – retrato –, configurando e sendo configurada por uma realidade muito própria da autora do romance; fazendo com que no Brasil, tenhamos contato inédito com este tipo de cenário e personagens. Lê-lo como um possível retrato em vias de formação é entender justamente as alternativas de inscrição, utilizando a palavra no sentido de Mbembe.
Além disso, a obra a partir dessa perspectiva construtiva dos diálogos anteriormente feitos entre os autores neste trabalho remete a um espaço-tempo singular, em que se dão diversas conexões e relações, seguindo na linha de Amselle; sendo também seus personagens as próprias conexões e elementos que produzem e realizam os intercâmbios. Visto isto, são atores socais de seu trajeto, também configurados pelas influências dos grupos e sociedades a que pertencem, onde estão inseridos – ou seja, uma formação em caráter dialético. Neste ponto, Kambili é o exemplo do contato, da inserção e produção de diversas estratégias e possibilidades culturais, das relações de poder e das organizações sócio-econômicas a que pertence e as quais produz.
Por conta desta complexidade, diversidade, particularidade, e ineditismo aos olhos dos leitores; temos então a possibilidade da quebra do silêncio. Silêncio este em dois vieses: do conhecimento acerca das sociedades africanas; e das possibilidades de construção do conhecimento que surgem a partir das narrativas e do tomar contato com estas outras realidades.
Por isso que Trouillot pode ser um elemento crucial para o entendimento dessas conexões realizadas neste trabalho. A narrativa contemporânea do romance de Chimamanda possivelmente releva lugares, pessoas, experiências que estiveram silenciadas por muito tempo, a partir das relações de poder que foram estruturadas e perpetuadas a partir do discurso da hegemonia eurocêntrica, colonial, branca. É possível que a partir deste romance, assim como tantos outros que nos chegam aos poucos pela travessia das letras pelo Atlântico, possamos tomar ciência e ter contato com aquele que sempre esteve muito próximo, mas que por conta dos estereótipos ainda não tinha se dado o valor em forma de conhecimento e desmistificação dos seus fazeres, viveres, relações sociais, políticas, etc.
Por isso, Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses organizando ideias acerca das epistemologias do Sul são também ponto de suporte teórico fundamental para explorarmos este romance. Significa que ao compreendermos estas ideias, tomamos esta narrativa como possibilidade de abertura para atravessar a linha abissal dos conhecimentos.
Pensando a construção da trajetória historiográfica feita por Trouillot, a obra nos faz lembrar os discursos do poder e a supressão das outras possibilidades de experiências “válidas”, que foram apagadas, e que estiveram esquecidas nas valorizações dos saberes existentes, ditos como “históricos”, “permitidos” e construídos enquanto “legítimos” de serem estudados pelos intelectuais como algo natural ao longo de muitos anos.
“Hibisco Roxo” é um pote de tinta para uma arte a ser realizada.
Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em sua primeira sala da exposição permanente “Arte no Brasil”, um quadro de Stephan Kessler retrata o continente africano à moda europeia nos idos do século XVII. O quadro possui uma composição escura. Retrata os seres humanos envoltos por animais, apesar de distinguir alguns outros com indumentárias comumente relacionadas aos lugares sociais europeus e as manifestações de poder da Europa. A natureza é abundante. Kessler não deixou escapar de seus pincéis os relatos que lhe chegavam aos ouvidos, do período em que os europeus começaram a conhecer as sociedades africanas.
Obviamente que esta retratação não condiz e nem é aquilo que foi visto pelos europeus nas suas experiências em viagens na África. Muitos estudos já trabalharam estes aspectos nos relatos de viajantes, analisando as falas dos europeus acerca do continente, das suas ideias em relação aos povos que o habitam e o habitaram, fazendo com tenhamos esta visão ainda hoje. Muitos trabalhos também assinalaram de maneiras criteriosas essas representações e as construções desses discursos, rompendo com as ideias do que era “verdadeiro” e “civilizador” para os europeus. Entretanto, o quadro de Kessler é um resquício ainda bastante vivo das representações no imaginário ocidental sobre as realidades múltiplas em África, que foram por muito tempo chapadas ao local do preconceito e submissão.
O que se põe aqui é: em que medida o quadro de Kessler representa os elementos da “verdade” construída pelo discurso colonial e eurocêntrico? É possível fazermos uma análise desta obra por este caminho. Porém, o que pode mais nos interessar aqui é o seu valor simbólico enquanto resquício da “verdade”, de um dado discurso construído e perpetuado no mundo contemporâneo. O quão esta imagem se fez importante para a construção de uma “verdade” dando subsídio à colonialidade do saber e à subjugação de diversos seres humanos? O que “Hibisco Roxo” nos mostra é que existe a possibilidade de pintarmos de outras formas, com outras tintas, fazer uma obra de arte diferente, aquela que Barber nos alertou estar escondida.
A produção do conhecimento pode ser uma obra.
Anderson Oliva em um artigo nos lembra a importância e as trajetórias dos estudos acerca da história da África para formação de professores: não estudar África hoje é uma impossibilidade. Apesar das enormes discussões que vieram se engendrando em diferentes campos do saber, a produção de um conhecimento historiográfico nessa área se tornou fulcral quando se começou a formar professores para o trabalho na Educação Básica no país. É impensável imaginar a produção do conhecimento hoje sem Áfricas.
Isto também deveria decorrer por conta de suas inúmeras trocas, complexidades e diversidades. Pensando na esteira da abordagem de Oliva; as sociedades em questão possuem escolas, olhares e discursos acerca dos seus patrimônios, “verdades” e estratégias de relações sócio-políticas; além de outras inúmeras formas de expressão e reverberação de seus contatos com o mundo que nos são caras por se tratarem de possibilidades distintas daquelas que sempre estivemos produzindo, discutindo e realizando. Apesar de percebermos que nessas mesmas sociedades existem relações de poder atreladas aos discursos coloniais, olhares marcadamente hegemônicos e dominadores; é aí que se engendram, sobretudo, as suas possibilidades de leituras e aberturas de conhecimento: nas rupturas, nas disputas e nos diversos complexos do saber que se engendram e são engendrados.
Tomar contato com estes lugares, por diferentes meios, é possível que seja começar a pisar no terreno daquilo que Boaventura de Sousa Santos considera enquanto pós-abissal. Pode ser justamente olhar para outra realidade. Não enquanto exótica, cristalizada, pura – coisa que ainda temos que trabalhar, pois a construção do pensamento veio por este viés, principalmente por conta dos estudos antropológicos e sua força inegável na construção desse espaço desigual do saber acerca das sociedades do continente africano e dos seus conhecimentos.
Portanto, é uma alternativa considerar as letras de Chimamanda enquanto retrato, como um objeto não só para a produção do conhecimento, mas como um elemento que possui um conhecimento que transgride, modifica, que pode ser observável enquanto pós-abissal. Além dos outros pontos relevantes que vimos no romance à luz dos autores e autoras elencados, fixa-se também a importância, a contribuição e a perspectiva desconhecida que a obra é capaz de incitar e de nos fazer perceber outras realidades que não aquelas marcadas pelos estereótipos, pelo discurso colonial hegemônico e eurocêntrico; tanto na compreensão de uma dada realidade, quanto para a produção do conhecimento.
Porém, não é somente no romance em que podemos enxergar estas possibilidades. Possivelmente, a historiografia acerca da história da África que vem sendo desenvolvida e trabalhada é bastante importante por conta desses mesmos mecanismos de reverberações. Mas para isso, é necessária uma história crítica da historiografia sobre a história da África no momento mais recente, pelo menos com aquilo que é trabalhado e produzido no Brasil.
Kambili é atriz social, é troca, é produção de conhecimentos – em um dado espaço-tempo. É disputa e conflito. É uma possibilidade para outros trilharem caminhos diferentes a partir de novos olhares.
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Moisés Corrêa Fonseca é doutorando no Programa de História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em História, licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense. Atuou no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, como Assistente de Pesquisa e exerceu atividades com acervos históricos, fontes orais e material audiovisual enquanto esteve no Museu da Pessoa. Foi produtor cultural e professor na iniciativa coletiva Aprender com África e professor substituto na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.