A ‘INDECÊNCIA’ DA AMIGA SANTA: BREVE MEMÓRIA DE UM ÁLBUM DE FAMÍLIA

Após o regresso ao sítio da família e à morte do pai, a jovem viúva Mariana tirava o sustento da terra. Ao lado da irmã solteira, Palmira, passaria a viver das vendas de hortaliças, queijos, ovos, leite e doces. Durante a semana, ambas se dedicavam à ordenha das vacas, à lida na roça e às vendas nos distritos. Aos domingos, não perdiam as missas, o sagrado compromisso religioso.

As esporádicas visitas a Juiz de Fora eram sempre motivadas pelo trabalho. De manhã bem cedo, organizavam as mercadorias nos cestos de bambu e seguiam a pé para a estação do trem. Na maioria das vezes, embarcavam na estação de Sobragy, distrito de Vargem Grande (atual município de Belmiro Braga – MG). Em outras ocasiões, seguiam para a estação de Cotegipe. Em Juiz de Fora, caminhavam pelas ruas entregando as encomendas nas casas dos fregueses.

Nessas idas à cidade na década de 1920, Mariana fez algumas amizades. Uma delas foi com uma moça da rua São Geraldo, de nome Santa, que todos chamavam Santinha. A amizade teria começado por intermédio de Serafim e Patrocínia, pais de Mariana e Palmira, antigos amigos do pai da moça, conhecido alfaiate da região. Dos vestígios dessa amizade restam, hoje, as duas fotos que Mariana recebeu da própria amiga, com direito à dedicatória e tudo mais. Posando em trajes carnavalescos, Santinha se permitia representar através das lentes do fotógrafo como legítima deusa carnavalesca, remetendo aos memoráveis carnavais de rua na cidade.

Certo dia, a moça, em visita ao sítio da amiga, foi logo pega de surpresa. Tão longo colocando os pés na varanda da casa, observou, há alguns passos de distância, a dita foto pendurada na parede principal da sala-de-estar. Lá estava ela, como a recepcionar as visitas que chegavam.

Não é estranho que Mariana tivesse reservado um lugar de destaque para aquela foto. Além do apreço pela retratada, os registros fotográficos eram ainda pouco acessíveis às famílias pobres. Os poucos momentos eternizados pelas lentes dos fotógrafos se transformavam, assim, em objeto de grande valor simbólico e afetivo.

Mas a surpresa teria constrangido e envergonhado Santinha, que confessou sentir-se desconfortável com a exposição de sua figura no principal cômodo da casa. Julgava aqueles trajes carnavalescos “indecentes”. Logo pediu à Mariana que devolvesse aquela recordação para o lugar de onde nunca deveria ter saído: seu recôndito baú de memórias pessoais. Com essa atitude, a moça talvez tentasse fazer jus ao próprio nome…

O fato é que, em seu íntimo, Santa demonstrava simpatia pela folia profana. Obstinada a saciar seu desejo, passou no estúdio do Centro da cidadepara ser fotografada com os tão sonhados trajes da moda, que não cansava de admirar nas páginas das revistas cariocas. Mas, como todo carnaval é sucedido pela quaresma, depois dessa “aventura”, Santa talvez preferisse contemplar aquela recordação apenas na intimidade.

O motivo da autocensura era o decote. Sempre ele, o decote, o tão amado e oprimido decote feminino, que, àquela época, muitas mulheres já começavam a usar sem grande peso na consciência. Essa mudança de comportamento, que, em 1928, Santinha parecia responder com algumas inseguranças, já motivara o poeta juiz-forano, Belmiro Braga, em 1923, a publicar, no livro Tarde Florida, um debochado soneto. Alguns dirão conter nele “pitadas” de profecia:

Para uns braços de moça ver, outrora
tinham os moços a maior tortura.
Que mangas tão compridas!… Mas, agora,
a coisa muda de figura.
E um tornozelo, então?!… Nossa Senhora!
Nenhum homem logrou essa ventura,
pois quando o pé a ponta punha fora,
vinha, logo, em seguida, uma censura…
Hoje, o decote é como o câmbio – desce;
e a barra dos vestidos, se acontece
mostrar as ligas, batem palmas os pais…
Se a Moda a roupa em baixo e em cima poda,
trarão as nossas netas, por ser moda,
uma faixa à cintura e… nada mais…


Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG. Dedica-se a pesquisas relativas ao campo da história social da cultura/literatura, sociabilidades, trajetórias e memórias.


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