BARULHO

Ele acordou e o relógio marcava cinco e quarenta e três. O dia estava frio, ainda que sentisse uma certa opressão quentinha sobre as coxas, fruto do gato bem gordo com quem partilhava a cama nos últimos anos. Havia ali uma intenção de levantamento, mas não do corpo, que se enrolava e tornava a cair por debaixo da manta grossa, queria levantar a alma, porém, como era presa da carne, foi a carne que ditou o ritmo. Primeiro esfregar os pés, apertar os olhos, conferir notícias pelo telefone, espreguiçar deitado espantando o gato para depois espreguiçar de pé.

Era quinta-feira, coisa da qual se lembrou apenas porque precisava tomar seu inibidor seletivo de recaptação de serotonina, o polivitamínico e o comprimido de óleo de peixe.  Na caixinha em que guardava os remédios estava escrito QUI, por isso o dia da semana. Há mais de doze anos, não come de manhã a menos que esteja em viagens ou hotéis. Rotineiramente faz um café preto forte, um copo e meio de água, daqueles maiores, e três colheres de sopa bem cheias de pó. É com isso que engole os remédios desde bem novo, desde quando não tomava remédios.

Enquanto bebe uma xícara dupla, confere mais notícias, agora prestando atenção. Outros incêndios no Brasil. Olimpíadas. Um abrigo para moradores de rua. Xuxa postou uma foto sem maquiagem, mostrando o que todos já sabiam: ela está velha. Há uma construção na rua de trás, que até aqui possui seis andares, e faz pensar que no inverno vai tapar o sol de pelo menos oito ou nove casas. Faz frio, e ainda vai fazer mais na medida em que as pessoas preferem morar para cima umas das outras, mesmo que uma ironia qualquer faça com que, mesmo empilhadas, nunca se vejam ou se toquem.

Pela janela, o céu bem azul do inverno e o sol são um convite para ir à rua. Precisava comprar essência para o ambiente, porque a casa e o consultório estavam sem perfume desde março. Uma quinta-feira, feliz, enfim. Feliz, porém, taciturna. Na noite anterior, ele adormeceu lendo José Saramago, mais especificamente “O ano da morte de Ricardo Reis”. Entre 1935 e 2021, o mundo foi desconstruído e refeito algumas dezenas de vezes, assim como entre Lisboa e Juiz Fora, ente Ricardo e Ele, moravam distâncias tão grandes que faziam a volta no sentido, tocando suas pontinhas no casaco cor de musgo e na meia grossa enquanto o vento cortava o ar bem rente às orelhas, enrijecendo a mandíbula. Chovia quando Reis desembarcou no Velho Mundo, e em Minas Gerais chove o tempo do relógio, o que igualmente encharca.

Desceu de escadas porque era preciso fazer algum exercício. O porteiro tomava água num copo de geléia. “Bom dia, dr., o boleto do apartamento chegou. Pega agora ou na volta?” Como ele sabia que pagava a prestação do imóvel financiado, não era possível precisar, se bem que há toda uma mística em torno dos porteiros. O prédio tem onze andares, cada um com oito apartamentos. Todos os dias quase oitenta bom dias, boa tardes, boa noites. Fora correios, visitas amorosas, entregadores de delivery, lixo na rua, discussões de casais, brigas de vizinhos. Ele gostava de pensar que os porteiros são deuses pagãos em um edifício cristão. Significantes para quaisquer significados.

Enfim, já na calçada, colocou os fones de ouvido e desceu a Av. Independência – não há pessoa com mais de trinta anos que tenha aceitado chamá-la de Itamar Franco – até a altura da Rio Branco. Virou à esquerda porque aproveitou para passar no consultório e recolher também as correspondências, já que não iria atender na quinta. Uma travessia de pistas não compreensível. Ônibus, e ambulâncias, e Kombis de lavanderias, tudo passa por ali, pelo X do mapa do tesouro juizforano. Foi descendo a avenida que ele começou a pensar, o que só fez na ida, no caminho para a Floriano Peixoto, onde compra seus perfumes domésticos.

Deus do céu, como a cidade é barulhenta. Chico Buarque cantava no fundo, mas por cima da história da Rita, uma infinidade de ruídos estalando nos ouvidos e cadenciando o fluxo de sangue nas artérias da cidade. Naquele momento o celular estava no bolso e, talvez porque pensasse, olhava pra frente e também para cima, para as fachadas dos prédios. A maioria, porém, parecia dançar no ritmo do ronco de motores e do grito de buzinas. Andar era depressa, atravessar a rua era depressa. Parado um instante o corpo no sinal, os olhos correm à tela refazendo o rito de conferir quem incomoda. Isso durante o percurso inteiro. Desceu a São João, Teatro Central, Marechal, Galeria dos Pobres, Getúlio Vargas – a quase nacionalmente avenida do esculacho – até chegar na sua loja.

Estava esbaforido, ansioso, apressado, urbano. Logo ele, que vinha do interior e que nas noites de sábado escutava fado enquanto fumava charutos, bem no estilo novo burguês de resistir. Se lembrou de Sábato que, no final da vida, andava em Buenos Aires com tampões de ouvido para ver melhor. Só que Sábato passava dos setenta e escrevia com as entranhas, ele não tinha nem quarenta e escrevia com os rins. Tampões não cabiam, mas aquele estupro sinestésico também não. “É só não sair de casa”. “É só evitar o centro”. “É só aumentar o volume”. “É só voltar para a roça”. A cidade não era dele? Terceirizar, assim, aquele lugar de memória ao excremento na máquina?

Comprou flor de cerejeira. Ótimo custo benefício! Foi fazendo o caminho de volta até chegar à Halfeld quando teve a ideia de combater uma guerra diferente, e tirou os fones de ouvido. Toda a voracidade daquelas mil vozes arrombaram sua cabeça no lugar da melodia de Zambujo. Pedintes, vendedores, entregadores de panfletos, vendedores de sorte. Todos juntos. Apertou o passo até chegar novamente na Rio Branco, agora subindo. Na volta, pensava, estava ali.

Completamente absorvido no transe da pequena Babel da Zona da Mata, quando passava em frente à Catedral Metropolitana – dessa vez não se lembrou do medieval bispo da cidade – um velhinho vinha na contramão. E veja que ironia a das palavras criando vida. O velhinho, que vinha na contramão, fez o sinal da cruz. Silêncio. Não na rua, carnaval do inferno!, no homem.

Nosso personagem não era católico, talvez fosse deísta, definitivamente não acreditava num deus que precisasse ser o tempo inteiro lembrado pelos homens de sua virilidade magnânima, mas aquele gesto sacralizava o velho. O velho era o deus da calçada domando o barulho com um cruzar de mãos na frente do rosto. Pode ser que aquela aparição, na verdade, fosse maior ou igual ao deus cristão, exatamente porque se lembrava de fazer aquele cumprimento secreto, quase esquecido, como se gritasse de cá da rua “Ei, Senhor, tudo bem? Ruim aí na cruz, ruim aqui na rua. Vamos seguir!”. Ele estava taciturno, acho que já disse, saiu para ouvir o vento cantar e comprar um sinal de benzeção legítima. Enquanto os velhos andarem na rua, uma parte preciosa da cidade sobrevive. Aquela cidade que é feita de gente boa, mas tão boa, que consola o próprio Cristo.


Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *