Há um século, num texto intitulado “Psicologia das massas e análise do Eu”¹, Freud nos falava sobre um tipo específico de amor. Antes, Freud insiste na ideia de que a ligação amorosa está na base da explicação dos processos anímicos, desde os individuais até os sociais. Ali ele nos fala como quem defende que um corpo social é simplesmente a subsunção, numa escala ampliada, da forma ficcional de um indivíduo, gestor de suas volições e portador de predicados que o identifica. Mas se Freud nos leva a falar de amor nesse caso, é porque mesmo uma massa organizada não se explica através da descrição da conveniência tática firmada em acordos coletivos de sobrevivência. Afinal, isso seria negligenciar um elemento ainda mais primário, que é capaz de fazer deslizar os ideais dos eus para ideais partilhados, numa fraterna socialização de modos de desejar.
Na verdade, Freud irá descrever esse tipo de aliança como estando sustentada por um fechamento narcísico do eu com outros eus que demandam reciprocamente amparo, afirmação e reconhecimento, e que estão dispostos a um mesmo núcleo afetivo. Não por acaso, esse encontro depende muito precisamente de certa instilação egóica, que se expressará no reforço mecânico daqueles predicados que constituem a identidade da massa e do indivíduo, dialeticamente. Assim, Freud falará, a sua maneira, dessa faceta do amor: “a identificação é a forma mais originária de ligação afetiva com um objeto”[1].
Nesse momento, Freud parece encontrar um termo para descrever uma instância do amor característico das sociedades liberais, que teria, por sua vez, a flexibilidade de se expandir para as formas sociais mais gregárias. Se podemos falar da identificação como uma operação elementar do amor, sua precisão teórica repousa no fato histórico de que a modernidade foi capaz de produzir um amor que desconhece relações produtivas fora do âmbito das identidades. Amar seria uma atividade necessariamente dependente de uma noção abstrata de pessoa, concebida enquanto portadora de qualidades que a predicam, que a definem identitariamente dentro de um campo social. Falar de amor, seria falar dos processos de demandas que merecem ser atendidas dentro de uma relação cooperativa, relação cujo cerne narcísico exigiria investimentos recíprocos de libido – no eu e ao outro.
Vejamos que dizer em termos de “investimento” ainda acabaria por adensar uma “analogia” bastante própria ao amor nas sociedades liberais modernas: a possibilidade do amor se expressa como se vivêssemos num mercado, no qual as pessoas circulam como mercadorias e “escolhem” umas às outras a partir de contratos que forçam relações de reconhecimento daquilo que em mim julgo essencial[2]. Estranha concepção em que a própria noção de pessoa se encontra fetichizada. E seu aspecto mercantil reside justamente na ideia de que a única forma possível de sujeito é aquela entificada na forma-pessoa e na forma-indivíduo, derivados do mesmo modelo daquela da propriedade privada. Nesse caso, é mais fácil assumir que não há sujeitos para o capitalismo – só existem sujeitos para os psicanalistas e para mais alguns outros.
Há de se perguntar se existiria uma outra forma de amor possível, que prescindisse das predicações individuais e nos conduzisse a uma experiência contraposta à racionalidade mercantil que apossa nossos corpos. Uma experiência que simplesmente renunciaria nossa própria dependência da noção psicológica de identidade. Caberia aqui o problema de deposição do amor, justamente nos tempos onde ele parece suscitar as mais esperançosas razões de ser – a saber, nos tempos de cólera, muros e sectarismos?
Acredito que se a psicanálise mesma pode nos ajudar a coletar de seu escopo teórico uma fagulha que faça queimar os vazios da identidade, aquiescendo aquilo que não coincide ao eu dentro de uma relação, é justamente porque podemos a partir de sua reflexão apontar a radicalidade de um amor anti-predicativo. Podemos encontrar algo assim no célebre aforismo lacaniano: “amar é dar aquilo que não se tem”[3]. É aqui que Lacan, motivado por identificar o caráter de desmesura que coloca um amor que não pode ser delimitado pela posse, qualifica o amor enquanto algo da ordem do dom. Afinal, dar o que não se tem é uma experiência de fazer circular aquilo que aparece como falta. Ponto obscuro este em que lidar com faltas é também reconhecer a impossibilidade de qualquer que seja a reciprocidade; pois no amor, não participamos quando demandamos investimentos e pactuamos acordos de indissolubilidade. No amor, a regra é justamente a não-equivalência daquilo que se dá e do que se recebe. Aliás, aquilo que é recebido, está longe de ser parte reconhecível de mim num outro externo. Aqui prevalece a radicalidade de um outro que é capaz de colapsar minha individualidade e impactar como um objeto que me sujeita sem pedir permissão.
Talvez o poema “Salmo” de Paul Celan – no qual a própria não-identidade é positivada em um ato de louvor enquanto se ama – também possa indicar esse caminho por onde o amor resiste a pressão de se submeter à identidade. Ali onde o amor é dom, ali também ele há de nos abrir para outra humanidade:
Ninguém molda-nos novamente com terra e barro
Ninguém evoca nosso pó
Ninguém.
Louvado sejas, Ninguém.
Por ti queremos
Nós florescer.
Ao teu
Encontro.
Um nada
Éramos nós, somos nós, permaneceremos
Sendo, florescendo:
A rosa nada, a
Rosa de ninguém.
(Paul Celan)
[1] FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Eu (1921).
[2] Ver mais sobre a racionalidade mercantil do amor em SAFATLE, V. (2019) O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
[3] LACAN, J. O seminário: livro 8 – A transferência (1960-1961).
Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.