ANTÔNIO SALES, BELMIRO BRAGA E PEDRO NAVA: TRAJETÓRIAS QUE SE CRUZAM

No Arquivo Histórico do Museu Mariano Procópio, encontra-se o seguinte poema de autoria de Antônio Sales, intitulado Dois Noivos: “Hoje, estava comprando/ Os preparos do nosso casamento/ Quando vi pelo azul do firmamento/ Passar ligeiro pássaro levando/ No bico um ramo para fazer seu ninho.//Sorri ao passarinho,/ E ele, esse meu sorriso compreendendo,/ Mandou um gorjeio prazenteiro,/ Como a dizer-me – salve, companheiro,/ Que andas também o ninho teu fazendo!”

Datado de 5 de agosto de 1900 e manuscrito pelo autor, esse poema integra uma série de versos autógrafos pertencentes à coleção do casal Visconde e Viscondessa de Cavalcanti, no Arquivo Histórico do Museu. São versos assinados por Machado de Assis, José Veríssimo, Arthur Azevedo, Afonso Celso, João Ribeiro, Lúcio de Mendonça, Carlos Magalhães Azeredo, Barão de Paranapiacaba, Domício da Gama, Ângelo de Amaral, M. Gonçalves da Rocha e Juan Valera.

Entretanto, por dois motivos, destacarei aqui o escritor cearense Antônio Sales: primeiramente, pelo fato de ser este pouco conhecido na atualidade; e, em segundo lugar, mas por um motivo não menos importante, devido ao seu relevante papel nas carreiras literárias dos escritores juiz-foranos Belmiro Braga (1872-1937) e Pedro Nava (1903-1984).

Nascido no Ceará em 1868, Sales mudou-se com a esposa, Alice Nava, para o Rio de Janeiro, em 1896. Sua chegada à capital da jovem república não ocorreu no anonimato, uma vez que o escritor já era bastante conhecido na imprensa da região Sudeste, por conta do ousado projeto da academia literária que ajudou a fundar em seu estado natal em 1892, a Padaria Espiritual, cuja proposta consistia na valorização e na busca de uma literatura que fosse reconhecidamente brasileira e capaz de expressar a realidade e as múltiplas facetas do amplo universo cultural do país.

Em janeiro de 1900 – ou seja, alguns meses antes de assinar esse poema –, Sales desloca-se do Rio de Janeiro para uma fazenda do interior mineiro, a fim de se recuperar de um problema de saúde. Era a Fazenda Bom Jesus, pertencente ao casal Joaquim Nogueira Jaguaribe e Maria Luísa (viúva de Henrique Halfeld). Hospedado nas imediações da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, em Cotegipe (então distrito de Juiz de Fora), o cearense, nessa ocasião, conhece o poeta Belmiro Braga, que trabalhava em um armazém naquela localidade. A partir desse contato, Sales, inserido numa densa rede de sociabilidade na capital federal e colaborando com diversos periódicos, torna-se um dos propagadores da produção literária belmiriana.

Em 1902, o cunhado de Sales, José Nava, também seu confrade nos tempos da Padaria Espiritual no Ceará, casa-se com uma das filhas dos proprietários da fazenda em que ficara hospedado em Cotegipe. Dessa união, nasceu, em 1903, Pedro Nava, aquele que, futuramente, teria destacada atuação na medicina e na literatura como memorialista. Falecendo em 1911, José Nava deixa Pedro Nava órfão de pai, fato que o aproxima ainda mais dos tios cearenses, com os quais chegou a morar no Rio de Janeiro em 1916, para dar continuidade à sua formação escolar.

Tanto nos registros memorialísticos de Belmiro Braga quanto nos de Pedro Nava, Antônio Sales se faz muito presente. As pesquisas, de fato, demonstram que o cearense exerceu importante papel nas carreiras literárias de ambos os escritores, seja através de influências direta e indiretamente exercidas em suas formações intelectuais, como também na ampliação de suas redes de sociabilidade literárias no Rio de Janeiro, cidade então considerada verdadeiro “polo irradiador de culturas provenientes de diferentes regiões do país” – segundo Nicolau Sevcenko.

Costurava-se, assim, a relação entre dois escritores nascidos na segunda metade do século XIX e o menino da Belle Époque, Pedro Nava. Em Baú de Ossos, um de seus livros de memórias, Pedro Nava declara que, após sua família mudar-se da casa situada na Rua Direita (atual Avenida Rio Branco), n. 142, em Juiz de Fora, quem passou a ali residir foi a família de Belmiro Braga. Mas as relações entre eles continuariam: Nava rememora, no livro, as diversas visitas que realizou junto com “tio Sales” ao “trovador de Vargem Grande”.

Antônio Sales deixou uma produção literária predominantemente em versos, muitos dos quais não exclusivamente marcados pelo lirismo presente no poema acima citado. O escritor também ficou muito conhecido pelas críticas mordazes que dirigia às autoridades e aos problemas políticos e sociais que assolavam o país, sendo, inclusive, perseguido por uma das oligarquias dominantes em sua terra natal. Além das crônicas e dos textos críticos publicados em diferentes periódicos, deixou também um romance regionalista, intitulado Aves de Arribação, publicado em folhetim, em 1903, pelo Correio da Manhã (RJ), e, posteriormente, em livro. A última edição data de 2005, pela Universidade Federal do Ceará. Curiosamente, um dos personagens desse livro, o poderoso e rico aristocrata Florêncio, recebeu o sobrenome “Cavalcanti de Albuquerque”, uma suposta referência do autor à influente família de Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, o Visconde de Cavalcanti, no nordeste do Brasil.

O primeiro encontro pessoal de Belmiro Braga com Antônio Sales, apesar de parecer fortuito, resultou numa longeva amizade de mais de trinta anos. Uma “amizade sincera”, segundo Belmiro Braga, em sua “escrita de si”. Ao contrário das “aves de arribação”, metáfora que, naquele contexto, designava o comportamento de indivíduos usurpadores, que chegavam a determinada região apenas para exaurir todos os benefícios e vantagens lá disponíveis, Antônio Sales e Belmiro Braga nutriram uma relação de amizade bastante proveitosa para a carreira literária de ambos. Após regressar ao Nordeste, Sales encontraria em Belmiro Braga – um poeta já famoso – o apoio necessário para manter sua obra viva entre os leitores do Sudeste. Ajudar a promover o nome e a obra de um escritor para além dos limites da “província” é um ato que deve ser entendido, nesse caso, como “via de mão dupla”, na qual o poder simbólico de cada um se amplia e se enriquece mutuamente.

Em 1933, ambos os escritores visitaram, juntos, talvez pela última vez, o Museu Mariano Procópio, conforme atestam suas assinaturas no livro de visitantes da instituição, o mesmo lugar de memória em que um dos poemas do cearense divide espaço, atualmente, com parte da produção literária do mineiro. Como os vestígios do passado não falam sozinhos, necessário se faz remexer constantemente esse grande “baú de ossos”, para que essas memórias continuem vivas de alguma forma.


REFERÊNCIAS

GABRIEL, Maria Alice Ribeiro. Orlas da Memória: a lembrança futura de Antônio Salles na obra de Pedro Nava. In: ALEA – Estudos Neolatinos, v. 19, n. 2, mai.-ago. 2017.

MELO, Juliana Ferreira de. Modos e condições de participação nas culturas do escrito: Pedro Nava e a formação na família (1903-1913). Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação: conhecimento e inclusão social, da Universidade Federal de Minas Gerais. UFMG: Belo Horizonte, 2008.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

VELLOSO, Monica. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.

VICENTE, S. A.. Teatro, crítica social e modernidade na produção do escritor Belmiro Braga (1870-1937): as peças de ‘gênero ligeiro’ na Primeira República. In: XIX Encontro de História da Anpuh-Rio – História do Futuro: ensino, pesquisa e divulgação científica, 2020, Rio de Janeiro. Anais do XIX Encontro de História da Anpuh-Rio – História do Futuro: ensino, pesquisa e divulgação científica. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2020.

VICENTE, S. A.. Entre o interior e capital: a trajetória biográfica do literato mineiro Belmiro Braga (1872-1937). In: VIII Encontro de Pesquisa em História da UFMG, 2019, Belo Horizonte. Anais do VIII Encontro de Pesquisa em História. Belo Horizonte: UFMG, 2019.

VICENTE, S. A.. Biografia como problema, humor levado a sério: Belmiro Braga, um trovador popular na Belle Époque tropical. In: XIV Semana de História Política – Res Publica: caminhos e descaminhos da cidadania brasileira, 2019, Rio de Janeiro. Anais da XIV Semana de História Política – Res Publica: caminhos e descaminhos da cidadania brasileira. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.


Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG. Dedica-se a pesquisas relativas ao campo da história social da cultura/literatura, sociabilidades, trajetórias e memórias.


3 Comentários

  1. Parabéns, Sérgio, pelo texto baseado em pesquisa, enriquecendo o conhecimento de literatura e de história com fatos relevantes e interessantes. Lindo o lírico poema que abre a sua escrita. São essas histórias de vidas que ensinam a História. Para mim, que sempre tive dificuldade com a matéria de História no colégio, cujo ensino/aprendizagem era pura decoreba, é muito agradável aprender assim. Gosto da profundidade e genialidade do memorialista Pedro Nava, do humor inteligente do Belmiro Braga (do pouco que conheço de trabalhos dele), e agora, passo a conhecer alguma coisa de Antônio Salles e do entrelaçamento das vidas desses escritores. Estou motivada para ler os trabalhos, tanto deste, quanto de Belmiro Braga. Estão de parabéns, você e a Revista Trama. Um abraço!

  2. Sérgio Vicente

    Regina, agradeço profundamente a leitura do texto e as generosas palavras sobre ele. Obrigado!

  3. Caro amigo, fiquei muito feliz em conhecer um pouco mais sobre sua pesquisa, mais feliz ainda por perceber entrelaços entre seus estudos, e aqueles que fiz à época do meu Mestrado sobre Nava e Baú de ossos, recorte de minha pesquisa. Parabéns!!!

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