BELISCO

O tempo foi gentil comigo
me deu efervescência nas palavras
um corpo ousando abraçar sonhos
me deixou ser pequena 
mesmo crescida. 
Para Belisco, 
meu gato, 
o tempo deu a 
sentença.
Eu e minha avó
chegamos à veterinária
                       e c o a
pela sala de espera
um passado impugnado
a voz dela arranhada pelo cigarro 
repetindo repetindo repetindo
esse pulguento aí não vai torrar meu dinheiro em consulta e remédio. 
Eu não sei dizer 
se ela está triste
ou se está arrependida 
eu até achei 
que ela poderia estar com medo
do silêncio provocado 
pelos cochilos do Belisco
cada vez mais      l    o    n    g    o    s
Quando ela me vê
choramingar na madrugada
ela tem um tato 
algo tão raro naquela figura rabugenta
de dizer
que a gente só arruma 
                      capacidade
de ser adulta
quando vê a morte chegar em alguém
eu pergunto se na palavra
                alguém
cabe Belisco
ou cabe ela.
Eu 
carrego meu gato no colo
para as consultas de emergência
e existe uma criança no meu peito
           pulando 
                  de  
                     alegria 
ao descobrir
que agora ele encontra conforto
nos meus braços
e eu digo a ela
menina, não é isto que você sonhou
enquanto o tempo
me tira o pouco que tenho. 
Ontem
eu voltei do trabalho 
e entreguei algum dinheiro nas mãos de vovó 
para a sua feira de amanhã
Belisco deitou entre nós
                       e dormiu 
achei que seria mais um desmaio
quando acordou em mim
uma      e s p a ç o s a 
pergunta:
quando deixamos de ver
que somos uma família? 
Mesmo que ele
nunca tivesse sido autorizado a fazer parte
                                estava aqui
costurando o corpo entre nossas pernas
pedindo brincadeiras
perseguindo a vassoura
querendo ajudar
escancarando ser
ao       b e i r a r
a ausência
um pedaço de nós. 
Belisco foge 
dos gritos das estatísticas:
falta pouco, falta pouco, falta pouco… 
enquanto precisa de mim
para tudo o que faz
e com a sabedoria 
de quem começa a fazer amizade 
com o silêncio do fim da vida
me diz
que a minha infância
escorre das minhas mãos
enquanto expande no peito, 
rasgando lugar, a tal da
                          capacidade.

Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia e, quando ninguém está olhando, escreve e compartilha seus questionamentos e descobertas na página @fazerafetar.


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