Minha franca e infundada convicção me leva a afirmar que as informações que coexistem na psique humana não se prestam à sintagmatização. Pode-se dizer, com base em mim1, que elas não se estruturam como quando verbalizamos. Escrever é, portanto, o movimento de expressão daquilo que se pretende traduzir, mensurar, acessar, fazer transparecer, de forma a organizar ou dar forma àquela subjetividade que se quer comunicar por meio da linguagem. É pressuposto que os enunciados estejam sujeitos às diversas interpretações possíveis e que, em sua gama imensurável de aberturas, elas possam se legitimar enquanto particulares propostas de significações por parte dos sujeitos alheios a esse pensamento que se exprime pela escrita. No entanto, dada essa infinidade de possibilidades, é provável que nenhuma corresponda àquela subjetividade primeira, a que inicialmente quis se fazer expressa. Comunicar se torna possível apenas à medida em que o escritor se conforma com seu fracasso na escrita de si – ou na escrita da ideia – e, com isso, se permite uma ação sem intenção. A comunicação se transmuta então em canto compartilhado, desarmônico e desafinado, já que a escritura cede lugar ao pensamento de sujeitos os quais a leitura compele às múltiplas interpretações que, por sua vez, dificilmente serão a mesma que motivou o processo de criação do autor.
Quão mais próximos ou mais distantes estamos na comunicação que se estabelece entre a escrita e a leitura? Criamos pontes ou abismos infinitos? Parto do pressuposto de que o inacessível é a condição da vida compartilhada entre os seres e que, da mesma forma que dois corpos não ocupam o mesmo espaço, jamais dois indivíduos poderão ser agenciados pelo mesmo ponto de vista, desta forma, estaríamos condenados a uma espécie de solidão no convívio com o outro.
Há um antropólogo2 (que indevidamente ouso citar) que dirá que o ponto de vista cria, não o objeto, como diria Saussure, mas o sujeito mesmo. Se partimos desse pressuposto, será possível afirmar que o ponto de vista que ocupamos para então nos constituirmos sujeitos justifica por si só a multiplicidade de pontos de vista? Pois, uma vez que nosso pensamento, quando escrito, torna-se capaz de evocar múltiplos pontos de vista, não seriam essas perspectivas o produto de perspectivas precedentes? Se nos constituímos enquanto sujeitos ao passo que ocupamos um ponto de vista, a expressão é capaz de produzir sujeitos? Ao que me parece, sim. Logo, o ato de escrever, mesmo em seu fracasso de comunicação, ou mesmo sem intenção, demonstra um potencial de criação que excede a produção escrita e se constitui então como o ato (ir)responsável de criação do sujeito.
1 O que é irrelevante, convenhamos.
2 Eduardo Viveiros de Castro.
Ana Beatriz Soli é escritora do que dá na telha, artista visual com o que está ao alcance e, enquanto não se pode dizer investigadora interdisciplinar, é graduanda em Letras na UNIFESP. Faz das humanidades e das artes o seu método de investigação da própria existência. Não sabe porquê nem pra quê, mas tem certeza de que quer ser lida.