O acaso fornece o chão para fantasias estéticas aterrorizantes
– Franco Berardi
O lugar-comum no uso do termo “ideologia” – isso no âmbito das redes sociais e na discussão mais pública – tem portado pelo menos dois sentidos anversos: o primeiro diz que é possível falar em algo como “multiplicidades ideológicas”, como se cada um possuísse seu edifício ideológico, sua montagem discursiva da realidade social; já o segundo tem caráter mais terrorífico ou pós-ideológico: ‘ideológico’ seria tudo aquilo que corrompe a ‘real’ economia das coisas para atender à interesses perversos e irracionais de seus proponentes; nossa chance então seria mantermos distância dessa Coisa ideológica diante de nós. Teríamos razões para dizer que essa própria forma de apresentar o campo da ideologia – restrito a um diagnóstico improvisado – possui desde já seu fundo ideológico. Mas por que isso?
O exemplo oportuno para designar o que prediquei como “anverso” é uma conhecida análise feita por Claude Lévi-Strauss¹ sobre os modos de organização numa aldeia indígena na América do Sul: os habitantes da aldeia foram separados em dois grupos e pediu-se que os indivíduos representassem em desenho a planta dessa aldeia. O experimento resultou em duas respostas diferentes: o membro de um grupo retratou tal planta como uma montagem habitacional em círculos ao redor de um terreno central; por outro lado, a outra resposta representava a aldeia como dividida em dois subgrupos de ajuntamentos, separados por uma fronteira imaginária. A análise de Lévi-Strauss aqui é certeira, pois, para ele, a verdadeira lição não é a constatação de desvios esquemáticos com relação a uma planta real, empiricamente demonstrável; nem mesmo a variedade de interpretações que perpassam a imaginação espacial. A sacada levi-straussiana é apontar a constante traumática que atravessa uma construção pretensamente totalizante da realidade. Há uma tensão que, em ambos casos, faz cindir o campo social por dentro, ratificando a diferença. (Ora, essa tensão pode mostrar como as duas noções de ideologia do início são, na verdade, dois lados de uma mesma moeda: enquanto uma aposta na “relatividade ideológica”, a outra estanca a diferença, exteriorizando o equívoco pro outro lado da fronteira.)
Esse experimento antropológico nos incita a pegar de empréstimo uma conceituação de ideologia bastante apropriada para este ensaio – pois (spoiler alert!) vamos aproveitar e ser conduzidos a uma reflexão ecossocial, digamos assim. É Louis Althusser quem irá formular um conceito de ideologia com cunho extremamente espaçológico ao descrevê-la como a representação imaginária da relação do sujeito com suas condições reais de existência. Althusser a define como quem, ao denotar um sentido ideológico, o faz na mesma dimensão daquilo que chamamos de fantasia (no sentido psicanalítico), isto é, a posição que presumimos ocupar diante do Outro; nossa resposta à pergunta “qual o meu papel no desejo do Outro?”.
Com essa formulação althusseriana, podemos dizer que se quisermos ter uma noção apropriada do sentido ideológico, devemos antes nos perguntar “como nos percebemos com relação à realidade social?”, quais são as visualizações que são tomadas como possíveis ou impossíveis, ou mesmo, o que esperarmos de nós diante dos problemas que nos circundam?
Toda essa introdução nos traz a uma questão aparentemente menos controversa, mas cheia de armadilhas. É de conhecimento geral que o atual estágio de “desenvolvimento humano” é marcado por uma profunda crise ambiental: aquecimento global, escassez de recursos naturais, catástrofes ecológicas, e por aí vai. Mais propriamente no caso da América do Sul, essa ameaça é composta de forças políticas que descaradamente competem pelo desmatamento da Amazônia em prol da irrefreada produção. Mas, ao mesmo tempo que somos todos tentados a recusar a tragédia do “fim da espécie” ou a defesa ecológica da vida na Terra, repudiando atos de auto-destruição, algo ainda nos parece impenetrável. É como se houvesse um nível acima do estrutural/sistêmico da dinâmica social – a natureza. Afinal, como reverter os impactos de uma força que parece não se reverter, uma vez que o mercado como ‘mantra intocável’ se tornou uma coisa automatizada, além da nossa própria capacidade de mediação? De repente, a escala macro dos acontecimentos – a camada de ozônio – se encontra interligada com nossos pequenos hábitos alimentícios – de forma infinistésima, na escala micro; e tudo vira uma questão de escala, de como se enxergar no meio desse espectro de tendências catastróficas, na maioria das vezes. É tendo fenômeno como esse em vista que um autor como Fredric Jameson pode notar que cerca de 30 anos atrás, apesar de já reconhecida a problemática ecológica face ao modo de produção capitalista, algo ainda podia ser notado no horizonte de transformação como possibilidade de abertura, ou uma novidade que viesse a aparecer. Atualmente, o clima é outro: não acreditamos que algo possa mudar, o capitalismo simplesmente se tornou uma força imparável e a noção de propriedade um Ente natural. Essa não seria a constatação de que não conseguimos representar num mapa cognitivo² nada além das abstrações impessoais de que nada mais pode ser feito? Será que o sumiço de categorias tão elementares como o comum, o indeterminado, o inexistente, ficarão para o passado, como resíduos do que já não pode ser mais? E se essa não for nossa resignação ideológica mais profunda – a de que nossa própria imaginação é incapaz de conceber condições de existência para fora do fatalismo?
¹LEVI-STRAUSS, C. (1958) Antropologia Estrutural.
²Ver mais sobre “mapeamento cognitivo” em Jameson, F. Mapeamento cognitivo, 1988.
Micael Correia tem 23 anos e é um escritor não-autorizado. Tem experiência em Psicologia Clínica e se interessa pelas áreas de Psicanálise, Filosofia e cultura popular.