A EMANCIPAÇÃO DAS COISAS COMUNS

A discussão a respeito do embate natureza x cultura quase sempre nos aparece como um conflito que impõe a pressuposição destas duas dimensões enquanto unidades tácitas, factualmente externas uma à outra. Sem entrar no mérito do possível avanço sinalizado através das abordagens interacionistas ou mediacionistas, pode-se perceber não apenas como natureza e cultura permanecem solidamente divididas, mas como essa pressuposição afeta a própria percepção que temos da exploração do homem sobre o meio ambiente – como um agente que inflige um outro externo desmedidamente. Parece conveniente falar nesses termos num momento em que a urgência da questão ecológica não nos permite ser indiferente, uma vez que somos inevitavelmente tangentes – seja pela culpa, pelo desamparo ou pela negação.

Uma mudança no modo de racionalização que não parece mais hipócrita (mas sim, cínica), aparece inclusive na forma discursiva dos ataques recentes àquilo que há de natural no nosso planeta: alguns anos atrás o discurso do grande empresariado se parecia mais um mascaramento em que as verdadeiras intenções eram relegadas a um subnível, enquanto a enunciação privilegiava a importância dos valores universais e ufanistas – como aquele que diz uma coisa perfumada e faz outra, i. e., age no final das contas conforme seus verdadeiros interesses de classe.

Hoje em dia a cena parece outra: não é mais necessário mascarar nada, pois os sujeitos agem conforme aquilo que, cinicamente, enunciam: “realmente as causas ambientais são importantes, porém, refrear nosso ritmo de produção não é mais possível. Só podemos tomar pequenas medidas pontuais”. Medidas que são bem exemplificadas por aqueles casos em que a empresa incorpora a crítica contra seu impacto ambiental disponibilizando meios de você contribuir com a causa ambiental através do próprio consumo interno à loja. Racionalidades cínicas[1].

Como estamos acostumados a afirmar, a forma social do capitalismo avançado mantém ligações inegáveis com a disforia ambiental que nos cerca. Mas às vezes, dizer que existe uma relação entre isso e aquilo não explica muito. Afinal, desde que os sujeitos se relacionam com normas eles o fazem das maneiras mais distintas. Seria o caso de apontarmos elementos para uma mudança na posição subjetiva no interior de nossas formas sociais, ou melhor dizendo, um descentramento que nos reposicione ante a um problema normalmente dado como irresolvível.

Poderíamos nos interrogar de outro modo a respeito daquilo que está em jogo em situações como essa. Em vez de dizermos quais relações estão presentes nessa dinâmica, podemos propor a questão sobre que tipo de relação está ausente quando as forças produtivas homem x natureza estão em ferrenha desigualdade. Aliás, lembremos que se é verdade que o paradigma cultura x natureza ainda possui força perlocutória em nossa práxis, também é verdade que ela tem condicionado a ideia de que tudo se trata da ação de um sobre o outro, num modelo colonizador. É claro que tal noção não se constitui fundamentalmente como um erro de percepção, mas a chave de compreensão aqui pode ser acoplada à uma outra ainda mais virulenta. Pois não é que natureza e cultura/sociedade se opõem numa polarização estanque, mas a própria definição de natureza/cultura já é uma produção psíquica, ou seja, ela já é uma ficção imaginária que exterioriza uma alteridade como sendo algo que nos olha de fora. Na verdade, se podemos falar de natureza num certo sentido conceitual, é porque ela já é uma abstração da alteridade que nos cinde por dentro, o que é o mesmo que afirmar que a natureza é aquilo que age como corpo estranho em nós mesmos, nosso não-eu cultural.

Nesse sentido, vale reafirmar em tom materialista que a natureza depõe nossa humanidade – em um sentido bastante estrito. Ela, enquanto corpo estranho, acaba por anunciar que a divisão estável que nos define enquanto humanos tem suportes “frágeis”. Seria mais adequado reconhecermos tal ponto de inadequação como algo que nos permite romper com àquilo que chamávamos de humano.

Essa questão ainda nos levaria a reconhecer a ausência de uma categoria muito adequada para a realização de uma revolução em nossa estrutura social. Antes, veja como parece um debate muito pungente a venda da região Amazônica à produtores estrangeiros, por exemplo. A violência da mera existência desse debate, porém, tem raízes mais profundas: não se trata apenas da ameaça da venda de uma propriedade nacional, mas o fato de imaginarmos tal região como sendo uma “propriedade” já é a consumação daquilo que parecíamos nos prevenir. Porque seria equivalente a dizer que não existem mais espaços considerados comuns, e essa é a ausência que nos violenta atualmente. Se as relações de posse e propriedade definem as únicas formas de vida possíveis, é porque tudo aquilo que poderia ser chamado de comum já não existe mais para nós. Pois o comum não é uma propriedade compartilhada. O comum é a abolição da propriedade. Desta forma, faz sentido falar em uma emancipação das coisas comuns. Emancipar não somente das mãos de um certo sistema, mas também das lógicas que a subjugam. Vale assumir, portanto, que isso implica a destituição de um paradigma humano que já não representa mais nosso estado de coisas, se é que um dia representou… não mais sustentar o jugo, mas rompê-lo.


[1] Ver mais sobre o cinismo como figura da racionalidade contemporânea em SAFATLE, Vladimir (2008) Cinismo e falência da crítica.

Micael Correia tem 23 anos e é um escritor não-autorizado. Tem experiência em Psicologia Clínica e se interessa pelas áreas de Psicanálise, Filosofia e cultura popular.


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