QUAL É A ESTÉTICA DO TRAUMA?

A memória sempre foi um horizonte do trabalho artístico e retratá-la entre as escolhas – e eventualmente os deveres – de quem faz. Cruzando períodos, ela aparece com a tarefa de congelar o fugidio, lançar para o futuro uma visão temporalizada ou gravar na mente do mundo uma mensagem através da excitação do olhar: da Antiguidade ao contemporâneo, das pinturas nas tumbas de Saqqara aos contra-monumentos da atualidade. A arte localiza para nós o momento e a imagem da memória. Faz isso de forma maleável, se atendo ao que quer e precisa. Em outras palavras, a arte também inventa a memória.

Em um texto anterior, falei sobre como a memória traduzida em monumento pode ser traiçoeira. Exemplos recentes, no Brasil também, não faltam: monumentos incendiados e decepados por ostentarem uma visão desatualizada (para não dizer torta) de eventos e personagens históricos aparecem cada vez mais. A memória é uma escolha, inclusive estética. Ela parte de uma visão particular que tenta existir no coletivo de maneira íntegra, mas só consegue ser relativamente compartilhada.

O mundo está passando (esperamos que pelos estágios finais) de uma tragédia coletiva que não deve ser esquecida. Já são vários os memoriais às vítimas da COVID-19 em inúmeras cidades. Enquanto eles aparecem, também surge a pergunta: quais imagens melhor representam esse trauma? Qual a forma mais atende a memória? Quem tem direito e espaço para ser lembrado e como?

D no Rio de Janeiro, instalado no Cemitério da Penitência. Nomes de vítimas são incluídos com pagamento de R$125 das famílias. Fonte: G1.

As visões do trauma nos grandes centros

Monumentos e memoriais são a forma que encontramos de manter o discurso da memória circulando na vida cotidiana. São, também, concretizaçoes de escolhas políticas e estéticas que ditam o que será apresentado para nós e, por consequência, o que e como devemos rememorar. Andreas Huyssen, professor de literatura da Universidade de Columbia, defende que há um paradoxo entre memória e esquecimentos nessas construções que vemos: é muito fácil, no cotidiano urbano, um memorial passar desapercebido e nos fazer esquecer do deveria lembrar. Os responsáveis por operar esse paradoxo são os pintores, escultores, arquitetos, acadêmicos, que materializam um discurso sobre a memória.

“Memorial aos Judeus Mortos da Europa”, em Berlim. Projeto do arquiteto Peter Eisenman. Fonte: Viajoteca.

Huyssen localiza no início dos anos 90 o nascimento da “cultura da memória”¹: a popularização transnacional do hábito de rememorar os eventos históricos, sobretudo os mais traumáticos, e eternizá-los na paisagem urbanas com seus próprios monumentos memoriais. Seu texto “A cultura da memória em um impasse” analisa sobretudo o que aconteceu em Berlim e Nova York, com a construção do Monumento aos Judeus Mortos da Europa e o Memorial do 11 de Setembro. Eles não só falam sobre o trauma, mas também concretizam discursos hegemônicos sobre essas memórias e estabelecem tendências estéticas de como representar grandes tragédias. Os dois memoriais têm algumas proximidades visíveis: ambientação pela geometria; uso de pedras e paisagismo; e nada de estátuas, bandeiras ou imagens figurativas. Não há espaço para figurações, nenhuma menção a certos tipos ou personagens específicos, dando lugar para o universal. São projetados por arquitetos antenados às tendências globais e como outras construções foram erguidas ao redor do mundo para esse objetivo. Gigantes artistas também participaram da concepção desses espaços: em Berlim, Richard Serra, um dos mais importantes nomes da contemporaneidade, participou inicialmente do projeto paisagístico do memorial; e em Nova York, o júri do memorial do 11 de Setembro foi composto por Maya Lin, artista e designer mundialmente celebrada que, inclusive, foi responsável por uma referência direta aos dois projetos: o Memorial dos Veteranos do Vietnã. Todos eles beberam em alguma influência do minimalismo, que se tornou um tipo de vertente artística favorita para lidar com memórias traumáticas e suas releituras, em monumentos ou contra-monumentos.²

“Memorial & Museu Nacional do 11 de Setembro” em Nova York. Projeto do arquiteto Michael Arad. Fonte: Civitatis.

O que nós vivemos, veremos e lembramos

Exemplos estrangeiros de grandes traumas que parecem ter virado “universais” são vários, mas uma pesquisa rápida no Google mostra que a “cultura da memória” acontece por aqui também: as palavras-chave “memorial da covid” mostram que são várias as cidades brasileiras que encontraram formas de marcar seus espaços com lembranças, esperançosas ou não, da tragédia coletiva que vivemos.

De Brasília vem o exemplo mais recente, disputado e talvez contraditório. O senador de Alagoas Renan Calheiros apresentou ao Senado Federal o projeto que cria o “Memorial em Homenagem às Vítimas da COVID-19 no Brasil”. Ele deverá ser instalado em frente ao Congresso Nacional, de forma que, como diz o texto, possa ser “facilmente visto pelos cidadãos, representando a dor pela perda das vítimas nos vinte e sete Estados da Federação.” Ele prevê 27 pedras em formato triangular a serem instaladas no espelho d’água em frente ao prédio do Congresso, cada uma delas vertendo água de seu topo em direção ao solo, como uma pequena cachoeira. Randolfe Rodrigues, senador do Amapá, defendeu a criação do memorial e que servisse para “que nunca esqueçamos”, porque “a vida cotidiana também é feita de símbolos”. Para os 16 senadores que já aprovaram a criação do memorial, ele deverá ser esse farol para sempre lembrar do que vivemos.

“Memorial em Homenagem às Vítimas da COVID-19 no Brasil”. Autor do projeto desconhecido. Fonte: G1.

A estética do trauma trabalhada no próximo memorial nacional é o que primeiro chama atenção. Não sabemos ainda o nome que assina o projeto, nem a apresentação divulgada no Senado Federal e na imprensa. Vemos alguns ecos das grandes referências mundiais discutidas há pouco: a água, a pedra, o paisagismo, a ausência da figuração. Há uma certa frieza e impessoalidade, como se qualquer falta de intimidade com as mais de 600 mil vítimas devesse ser compensada pela imponência dos materiais, sua articulação e localização privilegiada – no Memorial aos Veteranos do Vietnã (1982), de Maya Lin, também houve críticas à aparência “muito fúnebre, muito lúgubre, muito deprimente”³.

Não parece ser uma tendência apenas da capital federal. Manaus quer criar um espaço “solene”, usando o peso do aço reflexivo; São Paulo distribuiu totens pela cidade que também fazem conscientização; e Arapicara, em Alagoas, quer criar um circuito de instalações geométricas percorríveis. No Uruguai, o memorial projetado pelo escritório de arquitetura Gómez Platero vai ser um espaço de contemplação e reflexão sobre o concreto e o mar. Em Wuhan, na China, um memorial produziu cubos que funcionavam como cabines interativas. Nos Estados Unidos, no início do ano, um memorial temporário feito com 400 blocos retangulares iluminados foi preparado em frente à Casa Branca no período da posse de Joe Biden.

Estudo para memorial do Uruguai. Projeto do escritório Gómez Platero. Fonte: ArchDaily.

Mais uma vez as referências se percebem. A preferência por esse estilo sereno, ao mesmo tempo anônimo e universal, é compartilhada. Parece refletir aquilo que Huyssen reconheceu como “campo ampliado das práticas usadas nos memoriais e uma politica de significação que hoje é transnacional, altamente profissionalizada, controvertida, na opinião de alguns, mas obviamente bem-sucedida com os políticos e boa parte do público.”4 As tendências não são um mero apelo estético, mas um tipo de padrão de sucesso que encontrou agrado daqueles responsáveis por construir o discurso da memória, dos políticos e financiadores até os artistas e arquitetos executores. Nós que recebemos, contemplamos e interagimos, ficamos com a reação póstuma.

Mais do que o visual, a responsaiblidade política do trauma

Em várias cidades brasileiras vemos memoriais às vítimas da COVID que fogem à essa suposta tendência estética global. Corações, árvores, flores e outros símbolos narrativos (também bastante universais) se multiplicaram aqui e lá. Surge nessas situações um outro problema: como escolher o que representa o trauma compartilhado? Como saber quais imagens melhor representam uma dor coletiva? Se ela não representa a todos, como pode fazer lembrar? O problema faz refletir não apenas na representação da memória, mas quem tem acesso a ela, já que o memorial deverá ser o elo visível entre o que foi e o que ficou.

“Largo da Saúde”, em Curitiba. Fonte: Prefeitura Municipal de Curitiba.

Curitiba tem desde junho deste ano o seu Largo da Saúde, um memorial com mais cor e figuração, com pinturas de Antonio Maia reproduzidas em azulejo e um poema de Eduardo Galeano, tudo em tamanho gigante. Na inauguração do espaço, o prefeito Rafael Greca explicou que ele deveria existir “em memória a todos os nossos que se foram”. Já as reproduções das obras e poema servem para representar “o espírito dos Pinhais”. Não se sabe exatamente quem escolheu essa mensagem, nem o porquê desses artistas. Apesar disso, o prefeito, famoso pelo seu apreço pelos pinheiros e pinhões, parece ter aprovado a escolha do que melhor homenageia as dezenas de milhares de vidas perdidas na cidade.

Ao pensar em outras incoerências que surgem na construção dos memoriais, é impossível não voltar ao caso do memorial do Senado Federal. Como bem lembra Huyssen em seu texto, a depuração da memória realizada para materializá-la é política e produz política. Não se trata apenas de construir a mensagem que eterniza o trauma, mas também de escolher como explicar suas origens, motivações, heróis e responsáveis. Os efeitos da COVID-19 no Brasil, o recorde de mortes e famílias destroçadas bem poderiam ter sido menores com ações diferentes do governo federal, como bem sabemos. De que forma o memorial pode nos lembrar disso, sendo vizinho dos principais atores responsáveis pela condução da resposta à tragédia? Muitos desses, inclusive, poderiam ter evitado tamanha tragédia e, consequentemente, a própria motivação da construção daquele monumento. Viverão juntos, pacificamente.

Aquilo que chamamos normalmente de “guerra de narrativas”, termo tão famoso nesse período político que vivemos em que as diferentes ideologias se chocam na interpretação dos eventos, é também uma guerra de memórias. São versões distintas daquilo que todos vivemos e presenciamos. Daqui a muito tempo, as referênciais que possuiremos sobre nossa tragédia coletiva vão ser buscadas no que está sendo dito, feito e construído atualmente. Desde já, culpados e vítimas participam e criam discursos do que os colocou em uma ou outra posição. Infelizmente para nós, os culpados ainda estão tomando as decisões mais importantes que conduzem nossa história. Esperamos que, até lá, nossos monumentos e memoriais consigam atribuir os devidos papéis a todos os personagens que nos trouxeram até aqui.


1,2,4 Andreas Huyssen. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

Quentin Stevens, Karen A. Franck & Ruth Fazakerley. Countermonuments: the anti-monumental and the dialogic. (The Journal of Architecture, 2012).


Renan Archer é graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná e mestrando em História pela mesma instituição. Atua enquanto redator, curador e pesquisador, com principal interesse nos debates em história e crítica da arte contemporânea em espaços públicos. Já escreveu para o Curitiba Cult, A Escotilha e hoje colabora também com o jornal Plural.


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