PARA ABRIR OS SENTIDOS E A ESCRITA EM CIMA E EMBAIXO: PRÁTICA DE OBSERVAÇÃO FLUTUANTE PELO MINHOCÃO

Há cinco anos moro na região do entorno da via Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, região da
central de São Paulo/SP. O espaço, sempre frequentado por mim para uma corrida aos domingos,
fotografando mensalmente, pesquisando ou realizando alguma intervenção urbana, passeando ou
cruzando vinda de algum outro lugar da cidade, nunca havia sido abordado apenas pelo local em si. Ele
sempre foi um cenário, uma passagem, um instrumento ou um ponto de referência. Pela primeira vez me coloquei no lugar de caminhar e observar. Este reconhecimento se deu apenas quando subia o Minhocão pela rua Helvétia, sábado, dia 09 de junho de 2018, às 15h. Eu não tinha que fazer diretamente nada… só andar, abrir os olhos, as narinas e os ouvidos. A base deste relato se dá partir de duas caminhadas, a primeira citada acima e a segunda realizada dia 24 de junho, domingo, entre 13h30 e 16h30.

Identificar o lugar de onde se conta e qual história contar transpassa o caminho específico desta pretensa pesquisadora. Não é possível manter uma postura neutra diante de uma paisagem frequentada
cotidianamente e que é tema de muitas imagens, histórias e emoções. Trata-se de um exercício, um pacto agora firmado com o ambiente de se posicionar de outra maneira, sem buscas e se deixar permear, “é ir a lugares, voltar de lá com informações sobre como as pessoas vivem e tornar essas informações disponíveis à comunidade especializada, de uma forma prática, em vez de ficar vadiando por bibliotecas, refletindo sobre questões literárias” (Geertz, 1998, p. 11). Entrar e sair do espaço captando apenas o que ele oferece, não o que gostaria dele. A edição é uma condição natural da narrativa, devido à quantidade de informações, e a partir desta necessidade se configura o conceito de obra ficcional, defendido por Clifford Geertz.

Assim como a crítica da ficção e da poesia brota melhor do compromisso imaginativo com a própria ficção e com a poesia do que de ideias importadas sobre como estas palavras devem ser, a crítica dos escritos antropológicos (que, num sentido estrito, não são nem uma coisa nem outra, e, num sentido lato, são ambas as coisas) deve brotar de um engajamento semelhante a eles, e não de concepções sobre como deve ser a antropologia para se qualificar como ciência. (Geertz, 1998: pag. 17-18).

Uma tentativa de manter a escrita o mais simples e fiel aos acontecimentos destas duas tardes de junho de 2018. Dois dias bem diferentes de fluxo de pessoas regido por dois fatores principais: sábado à tarde –
ainda um dia de trabalho – e outro domingo à tarde; e o tempo. O primeiro dia precedia à chegada do
inverno e estava frio, já o segundo dia apresentava sol e calor. O comportamento em torno dos quase 3km de extensão foi semelhante em alguns aspectos e paradoxal em outros.

O percurso escolhido são as duas superfícies dessa estrutura de concreto e ferro: o Minhocão em cima e o Minhocão embaixo. Duas plataformas de trânsito de pessoas, coisas e seres que funcionam de maneira
bem diferente. No primeiro trecho, subi pela Helvétia, seguindo em direção à estação Marechal e ao Parque da Água Branca, desci o Minhocão até a outra extremidade deste na chegada da Rua Consolação,
subi novamente encerrando pelo mesmo ponto onde havia começado. O segundo percurso foi invertido: começou por baixo em direção à estação Marechal e o Parque da Água Branca, depois subi e fiz o percurso ao longo de toda a parte superior e desci novamente para a Rua Amaral Gurgel onde encerrei no mesmo local, a entrada da rua Helvétia. Vários pontos de observação ganharam destaque: os cheiros, as posturas das pessoas e suas velocidades influenciadas pelo motivo de estarem naquele espaço, a função do Minhocão, as grafias no concreto.

Neste caminho, o primeiro foco de atenção foram as pessoas que usavam o espaço em cima. No primeiro
dia, havia poucas pessoas, em sua maioria praticantes de atividade física, correndo sozinhas ou em duplas, caminhando e conversando. Era uma tarde fria. Nenhum corpo efetivamente atlético e nenhuma alta performance. Em menor número, alguns patinadores e skatistas – o asfalto se tornou mais propício a esta prática depois da reforma a partir de 2014. Ao final do trecho, um grupo de meninos brincando de jogar bola utilizando o portão de subida como trave. A segunda caminhada ofereceu a visão mais parecida com a ideia de parque tão defendida por muitos que usufruem dele. A tarde estava quente e ensolarada – contrapondo ao inverno que havia acabado de chegar -, portanto, havia muitas pessoas correndo, passeando com cachorros, passeando com os filhos, algumas crianças aprendendo a andar de bicicleta, patins ou skate. Um grupo grande de dezenas de ciclistas passou em comboio, provavelmente fazendo um trajeto longo pela cidade juntos onde o Minhocão era um dos locais de trajeto.

As muretas que dividem os sentidos do asfalto servem de bancos para conversas e entretenimento. Nas
grades que delimitam o Minhocão, sentido Parque da Água Branca, vestígios da manifestação promovida
pelo grupo Diálogo e Ação Petista a favor do ex-presidente do Brasil, Lula, que se encontra ainda preso,
acusado de atos de corrupção. O movimento colou diversos cartazes tamanho A4 com os dizeres “De novo com a força do povo” e uma foto do ex-presidente. Os cartazes colocados apenas no início desta subida, dia 24/06/18, foram quase todos arrancados, rasgados e deixados no mesmo local, formando pequenos emaranhados de papel e fitas adesivas.

A via de acesso ao Minhocão pela rua das Palmeiras, próxima da estação Marechal Deodoro recebia o
serviço de poda de árvores da Prefeitura de São Paulo. O caminhão posicionado continha árvores inteiras cortadas pelo serviço, retirando uma porção considerável de sombra num ponto do Minhocão onde geralmente se concentram pessoas apenas sentadas e comerciantes. Era como se o sol daquela tarde tivesse empurrado todas as pessoas para fora de suas casas e apartamentos. Fotógrafos caminhavam individualmente ou em grupo captando imagens (cheguei a contar um grupo de quase 10 jovens, provavelmente estudantes), testando possibilidades de fotografia deste trecho da cidade já considerado um ponto turístico de São Paulo. Mais adiante, próximo da via de acesso ao Elevado pela rua Helvétia, foi montado um set de filmagem. Não possível identificar se tratava-se de uma ficção ou documentário.

Pareciam os momentos finais do trabalho.

O som predominando naquela tarde foi o dos skates que transitavam praticamente toda a via elevada. Um número superior do que o de costume. Grupos de diversos tamanhos e os individuais, mas em grande parte em grupo. Testavam manobras, muitos aproveitavam o espaço para fazer gravações em vídeos de sua performance sobre o skate, tanto com seus telefones celulares e câmeras de vídeo. Este número crescia à medida que a caminhada se aproximava da Praça Roosevelt, ponto tradicional de encontro de skatistas. A imagem deles no Minhocão e, de longe ao fundo, preenchendo as calçadas da Praça Roosevelt lembrava um enxame e essa junção promoveu um som constante das rodas deslizando pelo asfalto. Foi um momento revelador ao observar a diferença que esta imagem imprimia no ambiente. Eles saltavam, deslizavam, alguns caíam, paravam para não atropelar um passante, outros deitados, sentados no asfalto mesmo e o som constante das rodas. Parecia caótico, mas olhando e ouvindo com atenção, havia uma organização e sincronia lá.

A estrutura superior vem se estabilizando como um ambiente promissor de beleza, verde, economia,
valorização do centro com semiatletas correndo, outros grupos curtindo seu baseado, cachorros passeando e gatos nas janelas dos prédios envolta. Em cima é possível sentir o cheiro da maconha sendo consumida por pessoas sentadas enquanto conversam e apreciam a paisagem urbana, embaixo o cheiro recorrente é uma mistura de fezes e urina fermentadas e restos de comida promovidos em parte pelas pessoas em situação de rua que vivem lá.

Embaixo, o percurso é mais complicado, é preciso lidar com a ciclovia e os ciclistas: se o pedestre escolhe caminhar pelo lado direito da ciclovia, o corpo fica mais exposto aos carros, se ele opta pelo lado esquerdo, é preciso ultrapassar as aglomerações de pessoas nos pontos de ônibus – alguns lotados, nenhum deles vazio – os abrigos das pessoas, os carrinhos de coleta de material reciclável, as goteiras que vêm de cima do Minhocão depois de qualquer chuva, o trânsito e o barulho dos carros.

Existem determinados vãos embaixo do Minhocão que se apresentaram ocupados por grupos de pessoas
em situação de rua: a cobertura e a Praça Marechal Teodoro, formando um espaço de convivência grande com mais estrutura de limitações; os que ficam entre as colunas 54 e 57 localizadas na quadra entre as ruas Albuquerque Lins e Lopes de Oliveira. Alguns são casais, outros grupos mistos e cada um tem seu espaço com um colchão improvisado, algumas roupas, pedaços de madeira e objetos diversos coletados no entorno. Estes possuem delimitações espaciais internas para organização utilizando as colunas do Minhocão como pontos de referência: a extremidade de uma coluna indica qual é o lugar do banheiro e a outra extremidade indica o local para despejo de lixos diversos, como embalagens de marmitas e restos de comida. Passando no final desta quadra, pude perceber mais afastada uma senhora que varria seu espaço com uma vassoura entre as colunas 56 e 57. Ela recolhia o lixo, colocando-o em um saco plástico e este saco foi depositado no lado B da coluna 57, bem como se fazem em residências onde se deve colocar o lixo pra fora de casa. Uma relação percebida não como um cuidado com o espaço público e a cidade, mas um cuidado com a própria casa e o pouco que se tem. Esta observação gerou em mim um certo constrangimento de estar bisbilhotando a intimidade do outro, num ambiente sem paredes, mas que possui seu espaço delimitado, conforme afirma Arantes Cacos, e restos delimitam domicílios onde a intimidade dos gestos e das ações levantam paredes invisíveis, mas presentes e que, ao serem atravessados pelo olhar do pesquisador, fazem-no sentir-se intruso, indiscreto, e perceber a força dos limites simbólicos desses casulos no espaço público. (Arantes, 2000, p.196)

Caminhando em direção ao final, outros dois grupos de pessoas morando embaixo do Minhocão se
localizam entre as colunas 62 e 63, localizadas entre as ruas Conselheiro Brotero e Tupi. Um grupo
pequeno, mas que consegue marcar bem seu espaço devido as duas carroças de coleta de material
reciclável e seus vários cachorros. Adiante, outro grupo ocupava as colunas 67 e 68 entre as ruas Tupi e
Pacaembu. O local forma uma espécie de acampamento fixo no local com barracas, espaço para cozinhar e dois homens jogando baralho em seus banquinhos, como uma varanda.

O espaço logo no início na coluna 01 estava ocupado novamente por um grupo de moradores, o local deste lado – após o Terminal Amaral Gurgel – estava mais limpo e menos frequentado, mas um grupo novo grande começava a ser formar entre algumas colunas próximas ao Terminal, podendo indicar a formação de grupos de pessoas em situação de rua se formando próximos a terminais de transporte público.

O foco de atenção sobre o Minhocão geralmente é concentrado na parte de cima, ainda cinza e concreta,
mas a ele é atribuído um certo charme de uma população cada vez mais jovem que utiliza o ambiente. As pessoas em situação de rua ocupam até as rampas de subida. A que dá acesso pela rua Helvétia, por
exemplo, se parece mais com a parte de baixo: alguns abrigos, algumas pessoas morando nessa subida
discreta e longe de muitos olhares – se essa entrada não é muito utilizada devido ao medo da presença dessas pessoas, ou se ela é ocupada porque não é muito utilizada pelos passantes de cima, é uma
incógnita. No final de um desses dias de caminhada desci por este caminho, o mais próximo da minha casa na própria rua Helvétia. Duas adolescentes desciam na minha frente e só desistiram de voltar quando viram que eu estava descendo também, mas aceleraram as passadas para descerem rapidamente. É possível que por morar próximo, esta imagem de pessoas na rua já não provoque tanto receio como os que cruzam esse local como passeio e turismo apenas. Mas estas foram impressões percebidas a partir do objetivo me colocar em alerta para as relações, a visibilidade e invisibilidade de algumas questões que moldam este trecho da cidade e seus citadinos, de receber e gravar na memória o que os seres deste trecho da cidade têm a oferecer, colocando as pernas para caminhar.


Referências bibliográficas

AGIER, Michel. Encontros etnográficos: interação, contexto, comparação. São Paulo/Maceió: Ed.
Unesp/Edufal, 2015.

ARANTES, Antonio A. “A guerra dos lugares”. In: . Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Ed. da Unicamp, 2000, p. 105-129. CERTEAU, Michel de. “Caminhadas pela cidade”. In: ____. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Editora Vozes, 1998.

FRÚGOLI Jr., H. “A cidade no diálogo entre disciplinas” in Fortuna, Carlos e Leite, Rogério P. (orgs.). Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra, Almedina, 2009, p. 53-67.

GEETTZ, Clifford. “Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita”. In: _. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002 [1988], p. 11-39.

PÉTONNET, Colette. “Observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense”. Antropolítica n. 25,
2º sem./2008 [1982], p. 99-111.


Chai Rodrigues é artista atuando nas artes visuais – fotografia, intervenção urbana e performance arte – e cênicas – teatro e circo, visando ampliar e integrar as artes e culturas, artistas e cidadãos, para além dos segmentos ditos tradicionais. Principais áreas de conhecimento: Produção de Bens Culturais; Análise de projetos culturais e artísticos; Artes cênicas – teatro e circo; Performance Arte; Audiovisual; Arte Urbana; Arte de Rua; Intervenção Urbana e Fotografia. website: https://www.chairodrigues.com


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *