RESPOSTA A VINÍCIUS

Moraes, Vinícius de. Mensagem à poesia. In: Vinícius de Moraes: poesia, prosa, teatro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 252-254.

A vida produz em seu fluxo algumas croniquetas que parecem produzidas por algum deus estranho e perdido por aí. Posso me explicar melhor, embora acredite que não exista a menor necessidade disso. Talvez certos acasos existam para florescer e dar fruto em texto. Gosto de pensar assim.

Acontece que a história aconteceu num sebo na cidade de São Luís, mais especificamente na Casa do Livro Usado, que fica na rua do Egito, perto da brigaderia. É válido dizer que meu primeiro interesse era o doce, e o segundo era conseguir caminhar tranquilo até a Beira Mar. No caminho, eu só pensava em como o Brasil são muitos. Estava no Maranhão há três dias e meus olhos tinham visto de tudo. Eu fumava também, debaixo do sol. Tudo isso dito para destacar a raridade da chance de topar com a Casa do Livro Usado, às 16h47 de uma terça-feira, com o sol rachando e ainda assim perceber que eles estavam vendendo coisas boas na banca de 15 reais.

Alguns exemplares do tipo Johanna Lindsey e seu soft porn, Robson Crusoé, um exemplar com as cartas de Jung, A Metamorfose, de Kafka, todo amarelado e manchado, um ou outro título obscuro daqueles que são vendidos em supermercados e basicamente era isso, ou pelo menos eu achei que fosse. Quando não esperava mais nada, ali por debaixo de um exemplar carcomido de O Livro dos Espíritos, vi a pontinha do nome “oética”. Chafurdei entre mofos e cheiro de velha até resgatar o livrinho branco com uma harpa que se transformava em flores desenhada na capa. Antologia Poética de Vinícius de Moraes, edição original de 1954! Um achado, sem dúvidas.

Não era obra grossa, pelo contrário. Passei pelo índice, muita coisa conhecida. Folheando para de fato conferir se valeria meus quinze reais, dei com um papel dobrado exatamente onde começava o poema Mensagem à Poesia. Óbvio que a curiosidade me fez desdobrar o sulfite. Ali, escrito a mão e ocupando os dois lados da folha eu pude ler algumas coisinhas. No canto direito, quase na quina da folha, três rosinhas feitas com pressa, abaixo delas, pelo que pude perceber, o mesmo nome riscado três vezes, preso debaixo de rabiscos de insegurança e urgência. Suspeito que fosse nome de mulher, porque a letra do texto era de homem. Também posso supor, pelo L mal coberto no início e as costas de um a no final, que se dirigia a uma Lúcia, Luisa, Lara, Leia, Laura, Lígia não sei. De certo não era para nenhuma Letícia ou Luciana, se tratava de nome curto. Ocupando o restante do espaço, o texto que segue abaixo com o título: Resposta a Vinícius.

“É com o peito aberto e descolado que te respondo, Vinícius, mesmo depois de tantos anos, ao bilhete, me dizendo que já não viria até mim pois que a realidade estava em desordem. Não existe dúvida sobre a intensidade do amor que nos uniu de assalto desde aquele enamoramento religioso tão besta entre a criança e seu pai. Da mesma forma também não me ocupa mais o pensamento a escolha de palavras corretas, seja em sonetos ou versos livres, com que por tantas vezes me enfeitei para visitar você durante as noites em que a solidão era maior do que o mundo. Importa dizer que amor não basta sem presença e é da tua presença que meu ventre é oco desde Adão.

Não te respondo em rimas, porque a poética deve falar de si sempre em prosa, sob a pena de perder a objetividade das coisas que deseja dizer. Te escrevo do tênue espaço entre o abandono e a saudade, dali onde existe um sopro de esperança que aponta para os ponteiros do relógio e sonha com a morte envolta em muitas anáguas, se aproximando suavemente, como uma amante mais esperada que a própria vida. Respondo porque sinto saudade, porque amo, porque desejo, e ao mesmo tempo, para registrar – como você fez – a certeza de sua mensagem, que premia a honestidade do homem com o vazio e a noite.

Talvez seja mal dos poetas, Vinícius, mas quando me escreve, diz que não vem pela necessidade de permanecer alerta, aberto para os caminhos já trilhados, e que perigam se desfazer. Me diz que não vem, não porque não queira, mas por heróis, lavradores, náufragos no oceano, tiranos no poder, homens arrependidos… São muitas coisas, eu sei…

Imagino quantas noites sem dormir, a arder com o devir de uma presença que te acariciou por dentro, mas que de longe, enlaçada em outros nós, outros braços e mãos, te observa com medo. E existe muito medo da minha parte. Imagine você quantos e quantos poetas não escreveram a mim desejando firmar um compromisso de segurança por toda a vida, alguns mesmo por toda a eternidade. Me deram templos, e ouro, e livros, e todos se foram um dia me deixando amortalhada sobre o divã. Satisfeita? Exausta. Tanto foi assim que aprendi a ser só, a me apaixonar uma vez a cada século e a não me deixar tocar senão pelo meu marido anônimo. Olho o mundo sem me espantar com as guerras, as mortes, as paixões de colégio, ou as bacanais de todas as semanas, aprendi a passar por isso mirando os olhos da minha calopsita e o infinito das miudezas diárias. Isso eu te conto, para que saiba o que me fez sentir, poeta, antes de partir.

Lembro da única vez em que me neguei a atendê-lo, exatamente porque alguma coisa me dizia que você seria como César conquistando as Gálias e voltando confortável ao senado, sem se dar conta de que a terra que havia pisado e o sangue derramado sobre ela, eram agora também seu sangue e a sua vida. Não desejo ter o mesmo destino das outras meretrizes que vi nascer e enterrei. Sumi de ti por um dia apenas, mas o suficiente para que você se aventurasse na prosa e no teatro, o que sempre fez pior do que na poesia. Voltei como a arrependida que não sabe do tamanho que tem, para te ouvir dizer, entre as apalpadelas indiscretas, que amanhã partiria sem volta. Voltei porque amei você, Vinícius. Permaneci.

Numa tarde de terça-feira, você partiu alegando sua missão em ser pai do mundo que construiu. Não havia palavras a serem ditas porque não se pode julgar os heróis, eles existem para demonstrar que vale a pena permanecer de pé. Tenho aqui seu bilhete nas mãos. “Mas não a traí. Em meu coração vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa envergonhá-la. A minha ausência é também um sortilégio do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la.” De fato, o que habita na presença que sua falta deixa em mim é o desejo pelo sortilégio, mas não diga que não traiu. Demos fogo aos homens, trapaceamos todos os deuses. A diferença, no entanto, é vetorial. Você conquistando os picos da virtude celeste, eu descendo à calçada da via comum. Nos encontramos sempre a distância, nos tocamos no sono, nos despedimos na lei.

Agora estamos os dois, cada um de seu lado do espelho, admirando tantos reflexos bons e capazes de aquecer o ventre, crispar a carne e ascender a alma. Você, com sua rima, sua falta de palavra, sua piada, sua bebida, sua paternidade. Eu, com minha prosa, com minhas palavras, a acidez, o remédio, a maternidade.

Não te digo adeus, meu poetinha preferido, porque das ardências que já me deram, foi você quem melhor me ocupou o espaço entre as coxas, que vai dos joelhos até a testa. Te digo que mesmo partindo eu permaneço aqui. Eu espero. Não porque você seja único, mas exatamente porque é tantos ao mesmo tempo. É possível que nunca volte, eu sei. É provável que perca um de seus três corações, mas não se esqueça de que aqui há uma cama arrumada, a mesa posta, e aquele silêncio tão íntimo que aprendi a escutar flertando contigo.

Não é uma resposta, não tem desfecho, não tem solução. Obviamente comprei o livro.


Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.


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