OS JARDINS DO MANICÔMIO

A loucura é um tema que perpassa pelo pensamento humano (impregnando-se na ciência e na arte), porque, tão antigos quanto os padrões estabelecidos socialmente, são os indivíduos que neles não se enquadram. Tão secular quanto o desejo intransigente de isolar os loucos, é a vontade pertinaz de compreendê-los.

Das abordagens habituais da loucura, emerge uma concepção de louco como “aquele que se desvia de um padrão”. Nesse sentido, “louco”, “demente”, “insano” passam a ser termos que confluem para o mesmo sentido: “anormal”, aquele que se desvia da norma, dos procedimentos considerados normais.

Muitas análises clássicas dos desvios da norma se concentram na loucura nociva, que se baseia na violência, na intenção de ferir, na tentativa deliberada de machucar o Outro. No entanto, dos estudos de Foucault ao conto machadiano “O alienista”, alguns textos científicos e literários nos convidam a observar outras facetas das desvirtuações do padrão, possibilitando-se que floresçam outros olhares sobre a anormalidade.

Tais olhares nos permitem perceber que alguns desvios da norma podem revelar algo sobre a própria norma, explicitando procedimentos que excedem o padrão ou demonstrando aspectos falhos da norma estabelecida. Algumas anormalidades podem constituir fontes de aprendizado, se renovarmos nosso modo de concebê-las.

Entre essas anormalidades, inclui-se uma loucura catártica, que resgata a força propulsora dos sonhos e, por isso, assume um caráter libertador. No âmbito ficcional, de Dom Quixote ao Maluco-Beleza configurado nas canções de Raul Seixas, há diversos loucos que, por meio de atitudes transgressoras, sobrepujam a normalidade excessivamente objetiva, que mecaniza os gestos e neutraliza as emoções.

Nessa mesma linha de sobrepujamento da norma, existe a anormalidade que se relaciona à excelência criativa, alcançada por artistas que, ao adotarem procedimentos anticonvencionais, mantêm sua produção em um nível qualitativo muito superior ao do “padrão artístico”. O que seria da arte moderna sem a loucura engenhosa de Fernando Pessoa e Salvador Dali?

Na época atual, destaca-se uma anormalidade que revela aspectos falhos da norma estabelecida: aquela associada ao comportamento dos indivíduos que apresentam distúrbios como depressão e ansiedade. Nesse comportamento, demonstra-se a fragilidade que habita em nós, uma fragilidade que nos atemoriza, porque nos humaniza. Reconhecer tal fragilidade é um passo fundamental para que resgatemos nossa humanidade primordial, que se contrapõe aos estereótipos de Super-Homem e Mulher Maravilha, os quais a modernidade, equivocadamente, instituiu como “padrão”.Algumas anormalidades podem ser concebidas como desvirtuações de procedimentos típicos do Homem contemporâneo, entre os quais sobressaem: o mecanicismo que suprime os sonhos; a acomodação à mediocridade; o temor de se defrontar com sua própria humanidade.


Saul Cabral Gomes Jr. nasceu em Belém (PA) e graduou-se em Letras (Licenciatura em Português e Inglês) pela Universidade da Amazônia (2001). Possui mestrado (2006) e doutorado (2011) em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Em 1998, obteve o 4º lugar no Concurso Nacional de Contos “Cidade de Araçatuba”. A produção do ensaio O romance regionalista: do panorama ao perfil lhe valeu o prêmio “Carlos Nascimento”, concedido pela Academia Paraense de Letras em 2002. Em 2020, publicou o livro Entre a História e o discurso: olhares sobre a obra de Gladstone Chaves de Melo.


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